sexta-feira, novembro 16, 2012
...
If I was your boyfriend,
Sometimes a girl just needs one
Keep you on my arm girl,
To love her and to hold
I can be a gentleman,
And when a girl is with one
If I was your boyfriend
Then she's in control
If I was your boyfriend
segunda-feira, novembro 05, 2012
Não mais
* Descer 70 degraus com dois sacos de lixo de 100 litros, às 7h, três vezes por semana.
* Desentupir oito ralos debaixo de um temporal
* Ouvir o vizinho cantando karaokê às oito da manhã no feriado
* Encontrar 768.404.456 potinhos de comida e água para os gatos de rua na minha calçada
* Ser surpreendida com o fim do gás de botijão no domingo à noite, com um bolo do forno
* Descer e subir ladeiras com sacos de compras
* Andar 15 minutos para comprar pão
* Varrer toneladas de folhas que os micos, entre uma brincadeira e outra nas árvores do terraço, derrubam no quintal
*Encontrar ninhos de passarinhos no parapeito das janelas
* Ver o nascer do sol, recostada na minha cama, atrás do Dedo de Deus
* Comer tangerinas em cima da caixa d'água, com Vênus brilhante sobre minha cabeça numa noite de verão
* Comer bananas, jambos, mamões, maracujás e acerolas no pé
* Dormir sob um cobertor de silêncio absoluto
* Acordar com os pássaros saudando o sol
* Surpreender-se com bem-te-vis apostando corrida por dentro de casa
* Adormecer na rede, sob as estrelas
Morando em casas nos últimos 33 anos, estou me mudando para um apartamento.
Findou-se a aventura.
* Desentupir oito ralos debaixo de um temporal
* Ouvir o vizinho cantando karaokê às oito da manhã no feriado
* Encontrar 768.404.456 potinhos de comida e água para os gatos de rua na minha calçada
* Ser surpreendida com o fim do gás de botijão no domingo à noite, com um bolo do forno
* Descer e subir ladeiras com sacos de compras
* Andar 15 minutos para comprar pão
* Varrer toneladas de folhas que os micos, entre uma brincadeira e outra nas árvores do terraço, derrubam no quintal
*Encontrar ninhos de passarinhos no parapeito das janelas
* Ver o nascer do sol, recostada na minha cama, atrás do Dedo de Deus
* Comer tangerinas em cima da caixa d'água, com Vênus brilhante sobre minha cabeça numa noite de verão
* Comer bananas, jambos, mamões, maracujás e acerolas no pé
* Dormir sob um cobertor de silêncio absoluto
* Acordar com os pássaros saudando o sol
* Surpreender-se com bem-te-vis apostando corrida por dentro de casa
* Adormecer na rede, sob as estrelas
Morando em casas nos últimos 33 anos, estou me mudando para um apartamento.
Findou-se a aventura.
sábado, outubro 27, 2012
Perdão
Por 14 anos eu amei Charles Bukovski. As pessoas riam do nome dele, até porque ele rapidamente virou Buco. Mas foi Charles Bukovski por toda a vida. Olhava de cima, porque entendia a vida. Tinha aprendido muito, silencioso no seu canto, vendo muita coisa - coisas que nem gente deveria ver.
O que eu mais me lembro são as mangueiras, carregadas de carlotinhas. Isso e a entrada da Ponte Rio-Niterói. Tudo cinzento - a ponte, o céu, o mar. A janela do carro ficou aberta, apesar de ventar muito. Porque você não esquece o cheiro.
Um velhinho. Ele foi muito simpático, atencioso, carinhoso - isso desde às seis da tarde do dia anterior, quando eu, aos prantos, tentava ao mesmo tempo ser racional com ele ao telefone, engolir o choro, extravasar a dor e consolar as meninas. Eu queria que alguém fizesse tudo por mim. Ele fez o que pôde. Chegou em casa quase às nove da noite, vindo do Recreio - meio Rio de Janeiro a percorrer antes da chuva. Pediu apenas que eu preenchesse um papel e ficasse dentro de casa com as meninas, que ele cuidaria de tudo. Ficamos eu e as meninas na cozinha, abraçadas, ouvindo o barulho do saco sendo desdobrado, o arfar sob mais de 50 quilos, o esforço em ser o mais silencioso possível. "Amanhã eu pego a senhora às nove, pode ser?"
As mangueiras. Carregadas. Logo depois da loja de Fogos Santo Antonio, dobrar e seguir uns dois quilômetros na estrada de terra. O lugar é bonito. Tem muitas árvores frutíferas e um tanque de tartarugas. Eu entro rápido, sento em frente à atendente e espero. Três horas. Não tem café ("Só abrimos faz dois meses"), mas uma coca-cola aparece. Catorze anos em três horas e, no fim, um saquinho de cinzas numa caixa. A moça põe uma oração dentro dela - ia botar também um imã de geladeira mas eu pedi, num soluço, "não, por favor, me dê aqui que eu guardo na bolsa."
Dia 18. Eu resolvi, depois de semanas de muita canseira, tirar um dia pra me divertir na internet. Um dia só para ler e falar abobrinhas, conhecer melhor as pessoas, rir um bocadinho. Eu me diverti muito!
Era para eu ter ido para casa depois de as meninas saírem do colégio, mas eu resolvi esticar um pouco - estava tão boa a conversa, né? Chegamos em casa às seis da tarde para encontrar meu adorado, meu querido golden retriever morto na varanda.
Hoje ele faria 14 anos. Culpa é uma merda. Saudade também.
O que eu mais me lembro são as mangueiras, carregadas de carlotinhas. Isso e a entrada da Ponte Rio-Niterói. Tudo cinzento - a ponte, o céu, o mar. A janela do carro ficou aberta, apesar de ventar muito. Porque você não esquece o cheiro.
Um velhinho. Ele foi muito simpático, atencioso, carinhoso - isso desde às seis da tarde do dia anterior, quando eu, aos prantos, tentava ao mesmo tempo ser racional com ele ao telefone, engolir o choro, extravasar a dor e consolar as meninas. Eu queria que alguém fizesse tudo por mim. Ele fez o que pôde. Chegou em casa quase às nove da noite, vindo do Recreio - meio Rio de Janeiro a percorrer antes da chuva. Pediu apenas que eu preenchesse um papel e ficasse dentro de casa com as meninas, que ele cuidaria de tudo. Ficamos eu e as meninas na cozinha, abraçadas, ouvindo o barulho do saco sendo desdobrado, o arfar sob mais de 50 quilos, o esforço em ser o mais silencioso possível. "Amanhã eu pego a senhora às nove, pode ser?"
As mangueiras. Carregadas. Logo depois da loja de Fogos Santo Antonio, dobrar e seguir uns dois quilômetros na estrada de terra. O lugar é bonito. Tem muitas árvores frutíferas e um tanque de tartarugas. Eu entro rápido, sento em frente à atendente e espero. Três horas. Não tem café ("Só abrimos faz dois meses"), mas uma coca-cola aparece. Catorze anos em três horas e, no fim, um saquinho de cinzas numa caixa. A moça põe uma oração dentro dela - ia botar também um imã de geladeira mas eu pedi, num soluço, "não, por favor, me dê aqui que eu guardo na bolsa."
Dia 18. Eu resolvi, depois de semanas de muita canseira, tirar um dia pra me divertir na internet. Um dia só para ler e falar abobrinhas, conhecer melhor as pessoas, rir um bocadinho. Eu me diverti muito!
Era para eu ter ido para casa depois de as meninas saírem do colégio, mas eu resolvi esticar um pouco - estava tão boa a conversa, né? Chegamos em casa às seis da tarde para encontrar meu adorado, meu querido golden retriever morto na varanda.
Hoje ele faria 14 anos. Culpa é uma merda. Saudade também.
terça-feira, outubro 16, 2012
Seu futuro em picles
Dando uma geral no apartamento, você chega a duas constatações preocupantes:
Sua mãe juntou exatos 688 vidros de conservas/molho de tomate/geléias
e
Você está indo pelo mesmo caminho.
Sua mãe juntou exatos 688 vidros de conservas/molho de tomate/geléias
e
Você está indo pelo mesmo caminho.
No ar
Catatau foi pedida ontem em namoro, depois de duas semanas de enrolação - sabe como é, dois caranguejinhos ficam naquela coisa de vai prali, vai pra lá, tô cum vergonha, diz você.
Ele fez o pedido via webcam.
Tempos modernos.
quinta-feira, outubro 11, 2012
Acontece agora
Terça, 15h: Zé Colméia, chegada da escola, diz que brigou com uma das meninas do grupo e vai fazer o trabalho de geografia para ser entregue no dia seguinte, sozinha (aka comigo, of course). Espalhamos dois sacos de 100 litros de sucata na sala e começamos.
Quarta, 1h: Zé Colméia dorme pro cima de caixas de ovos. Eu ainda levo duas horas para finalizar a "casa que quatro cômodos de um morador com problemas de excesso de consumo".
Quarta, 3h20: Consigo me deitar.
Quarta, 3h50: O cachorro grita na cozinha porque não consegue levantar para beber água.
Quarta, 4h15: O cachorro grita na cozinha porque foi levantar e entalou embaixo da mesa.
Quarta, 4h52: O cachorro grita na cozinha porque não consegue levantar para fazer xixi.
Quarta, 5h: O cachorro grita lá fora porque escorregou e caiu numa poça de xixi, o que demanda lavar um golden retriever de 50 quilos com lenços umedecidos para bebês.
Quarta, 5h30: Lembro que não fiz nada para o lanche do Dia das Crianças da Catatau. Preparo sanduíches e faço a jato uma garrafa de mate.
Quarta, 7h: Despejo as crianças na escola e vou para a rodoviária.
Quarta, 7h50: Rumo a Friburgo, onde meu pai será operado. O homem ao meu lado tem um cacoete horrível de fungar alto a cada 0,8 segundo - faz isso por duas horas e meia.
Quarta, 11h: Chego no hospital. A cirurgia que seria às 9h é postergada para as 15h30m. Fico no quarto como acompanhante, o que dá à minha mãe a oportunidade de ter algumas horas sem alguém em jejum e com um tumor de 8cm na cabeça reclamando de tudo e se escondendo da enfermeira, que quer dar "uma injeção nas minhas pernas para que eu nunca mais ande."
Quarta, 17h: Meu pai começa a ser preparado para a cirurgia. Chega o neurocirurgião. Sigo para a rodoviária. As meninas estão na casa de uma professora, me esperando.
Quarta, 17h55: Pego o ônibus rumo ao Rio. Uma menina atrás de mim chuta a minha poltrona a viagem inteira.
Quarta, 20h45: Chego na rodoviária. Uma fila gigantesca para pegar um táxi. Consigo recolher as meninas uma hora depois.
Quarta, 22h: No supermercado, comprando ração para os cachorros.
Quarta, 22h45m: Chegamos em casa. Zé Colméia precisa refazer o trabalho - a professora diz que a casa tem que ter visão horizontal (caixas de sapatos montadas umas sobre as outras) e não vertical (como montamos, dentro de uma caixa de papel sulfite). Por gentileza, faleça, mestra.
Quinta, 2h30m: Zé Colméia desmaia sobre uma pilha de papel camurça. O cachorro grita na cozinha porque não consegue levantar para fazer xixi.
Quinta, 4h50m: Finalizo o trabalho. O cachorro grita na cozinha porque não consegue levantar pra beber água.
Quinta, 5h: Tomo café da manhã - se dormir não vou conseguir acordar as meninas na meia hora seguinte.
Quinta, 6h30m. Despacho as meninas para a escola. Enquanto sonho acordada com o meu travesseiro, a locadora liga - quer finalizar a inspeção da casa e só tem esse dia antes do feriado e, pra falar a verdade, está lá embaixo no portão e viu as meninas saindo e pode ser agora?
Quinta, 10h30m: A locadora sai.
Quinta, 10h35m: A escola liga. Zé Colméia está vomitando. Entre um ai quero minha mãe e outro, confessa que comeu sete churros escondido na hora do recreio.
Quinta, 11h15m: Vou buscar Zé Colméia na escola. Passo num hortifruti para comprar frutas.
Quinta, 12h30m: Vou buscar Catatau na escola. Ela ainda está almoçando. Enquanto espero, combino três visitas para orçamento de empresas de mudanças/pintura/impermeabilização de assoalho.
Quinta, 16h: Depois de encomendar ração, passar no banco, pagar contas, comprar remédios, lavar e pendurar duas máquinas de roupa, estou saindo para fazer o supermercado do feriado.
A única coisa que me mantém em pé é a eletricidade estática. Sou um experimento da física humano, ao vivo e a cores, em tempo real. Também estou vendo coisas, mas é melhor pular essa parte.
terça-feira, outubro 09, 2012
Tudo de novo
Meu medo de conhecer gente nova - eu, não Suzana - é quase patológico.
Pra sair à luz do sol vou ter que reaprender a ser um bicho social.
Pra sair à luz do sol vou ter que reaprender a ser um bicho social.
Ao encontro da luz
Você começa realmente a questionar se esse mundo - o mesmo mundo que se apresenta ao piscarmos os olhinhos toda manhã - é real ou fruto de uma diabólica conspiração arquitetada por uma corporação do futuro quando você descobre que sua filha (aquela que não sabe falar de outra coisa que não seja Crepúsculo e atores musculosos & outras abobrinhas típicas de quem não tem nada da cabeça) tem, no iPod, dezenas de músicas de James Brown, Marvin Gaye, Etta James (!), Sly & The Family Stones (!!), Stevie Wonder e por aí vai.
E carrega na mochila O morro dos ventos uivantes*.
Sim. Há esperança.
Oremos.
* O livro preferido da Bella, de Crepúsculo. Nada é perfeito.
E carrega na mochila O morro dos ventos uivantes*.
Sim. Há esperança.
Oremos.
* O livro preferido da Bella, de Crepúsculo. Nada é perfeito.
segunda-feira, outubro 08, 2012
...
Desfazer dois imóveis (aka livros, livros, documentos, livros, fotografias, livros, bonecos de pelúcia, barbies, livros, livros, livros, livros, dois cachorros, livros, livros e meia dúzia de livros) e juntá-los em um só:
Quero muito, mas muito - MUITO - a minha mãe.
Quero muito, mas muito - MUITO - a minha mãe.
quinta-feira, outubro 04, 2012
...
E o negócio tá andando - e eu tô dando uma empurrada, porque o dinheiro da poupança acabou. Finito. Então agora TEM que correr pro abraço, porque já estamos nos acréscimos e prorrogação não vai ter não, filha.
Mas não era sobre isso o que eu ia falar. Desde que voltou da imersão como-seria-viver-na-casa-do-meu pai, Zé Colméia acordou pra vida e resolveu estudar (a ameaça de perder o ano também ajudou). Estávamos ontem falando do meu negócio e da reunião que eu tive com a sócia carioca (sou chique: tenho uma sócia do Rio e uma sócia paulista). E filhota perguntou: "Mãe, minha prima trabalha desde os 14 anos. Posso trabalhar também?"
Amei aquela aborrecente que nos últimos dias voltou a brincar com seu bebê-boneca (tudo bem que a dita é chamada de "Kristéin" - nada é perfeito). Uma cara muito séria. Falei que ela teria que ser aprendiz, que teria que esperar até depois de junho de 2013 (quando ela faz 14 anos), que eu podia falar com o povo das editoras etc. Ela pediu então pra ligar pro pai para contar a novidade.
O que ele fez?
Riu da cara dela. Histericamente.
Depois vem a representante do Ministério Público dizer que "a presença do pai é importante".
Faleçam os dois.
Mas não era sobre isso o que eu ia falar. Desde que voltou da imersão como-seria-viver-na-casa-do-meu pai, Zé Colméia acordou pra vida e resolveu estudar (a ameaça de perder o ano também ajudou). Estávamos ontem falando do meu negócio e da reunião que eu tive com a sócia carioca (sou chique: tenho uma sócia do Rio e uma sócia paulista). E filhota perguntou: "Mãe, minha prima trabalha desde os 14 anos. Posso trabalhar também?"
Amei aquela aborrecente que nos últimos dias voltou a brincar com seu bebê-boneca (tudo bem que a dita é chamada de "Kristéin" - nada é perfeito). Uma cara muito séria. Falei que ela teria que ser aprendiz, que teria que esperar até depois de junho de 2013 (quando ela faz 14 anos), que eu podia falar com o povo das editoras etc. Ela pediu então pra ligar pro pai para contar a novidade.
O que ele fez?
Riu da cara dela. Histericamente.
Depois vem a representante do Ministério Público dizer que "a presença do pai é importante".
Faleçam os dois.
segunda-feira, outubro 01, 2012
Os afogados e os sobreviventes*
A vida é somente histórias que contamos, me diz uma tcheca que mora na Inglaterra - é uma das milhares de crianças adotadas por famílias que receberam os órfãos da guerra. Ela descobriu, tarde na vida, que tudo o que ela sabia sobre sua família era uma ficção muito bem contada. Ou quase. Também está numa cruzada para achar seus quatro irmãos.
Somos seis na busca pela família Di Zio. Um mora na Áustria e pegou para si o encargo de entrar em contato com as organizações, como a Fondation pour la Mémoire de la Déportation, o Museo della Deportazione e o Simon Wiesenthal Center, numa lista com mais de 50 entidades. Eu faço a pesquisa e escrevo emails. Já mandei quase uma centena, contando a mesma história. Recebi algumas respostas, mas normalmente é de gente que quer compartilhar sua experiência. Um homem da Austrália me disse que o pior que aconteceu é que todos dizem "nunca esquecer" mas ninguém quer ouvir. Diz ele que, menino ainda, quando tentava contar tudo o que tinha visto era interrompido. Esqueça, isso já passou. "Não, não passou. Jamais vai passar. O que fazemos é arrumar uma grande caixa em nossa cabeça e, ali, guardar as lembranças. Mesmo sem pais, irmãos, primos, tios, amigos que partilharam conosco o sofrimento - porque eles mesmos se foram - a sua ausência é que nos faz lembrar, todos os dias, que nós conseguimos, e eles não."
Eu sei que é uma busca infrutífera. Conversamos nós seis esse fim de semana e sabemos que essa é uma tarefa para anos de trabalho - tempo que nosso Emilio não tem.
* Primo Levi. A dor torna-se um vício que só é curado depois de lido tudo o que ele escreveu.
quinta-feira, setembro 27, 2012
Ninguém tasca!
(Catatau apontando no pátio seu futuro marido):
- Nossa, filha, mas esse seu paquera é um gato, hein?
- Nem vem, mãe. Eu vi primeiro.
- Nossa, filha, mas esse seu paquera é um gato, hein?
- Nem vem, mãe. Eu vi primeiro.
quarta-feira, setembro 26, 2012
Somente
Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
e lhes mando essas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar
repitam-nas a seus filhos.
Ou senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.
Na manhã do dia 21, porém, soube-se que os judeus seriam levados no dia seguinte. Todos, sem exceção. Inclusive as crianças, os velhos, os doentes. Não se sabia para onde. A ordem era preparar-se para uma viagem de quinze dias. [...]
Para os condenados à morte, a tradição prescreve um austero cerimonial, a fim de tornar evidente que já não existe paixão nem raiva; apenas medida de justiça, triste obrigação perante a sociedade, tanto que até o verdugo pode ter piedade da vítima. Evita-se ao condenado, portanto, toda preocupação externa; a solidão lhe é concedida e, se assim ele o desejar, todo conforto espiritual; procura-se, enfim, que não perceba ao redor de si nem ódio, nem arbitrariedade, mas necessidade e justiça e, junto com a pena, o perdão.
Nada disso, porém, nos foi concedido, já que éramos muitos, e pouco o tempo. Além do mais, do que deveríamos nos arrepender ou sermos perdoados? O comissário italiano providenciou para que todos os serviços continuassem funcionando até o anúncio definitivo; na cozinha trabalhou-se como sempre, nas equipes de limpeza também; até os professores da pequena escola deram aula à noite, como nas noites anteriores. Só que as crianças não receberam dever para o dia seguinte.
A noite chegou, e todos compreenderam que olhos humanos não deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite dessas. Nenhum dos guardas, italianos ou alemães, animou-se a vir até nós para ver o que fazem os homens quando sabem que vão morrer.
Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais convincente. Uns rezaram, outros se embebedaram; mergulharam, alguns, em nefanda, derradeira paixão. As mães, porém, ficaram acordadas para preparar com esmero as provisões para a viagem, deram banho nas crianças, arrumaram as malas, e, ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar. Elas não esqueceram as fraldas, os brinquedos, os travesseiros, nem todas as pequenas coisas necessárias às crianças e que as mães conhecem tão bem. Será que vocês não fariam o mesmo? Se estivessem para ser mortos, amanhã, junto com seus filhos, será que hoje não lhes dariam de comer?
No barracão nº 6 morava o velho Gattegno, com a mulher, os filhos, os genros, as noras trabalhadeiras. [...] As mulheres foram as primeiras a ocupar-se dos preparativos da viagem, caladas e rápidas, para que não faltasse tempo para o luto e, quando tudo ficou pronto, assado o pão, amarradas as trouxas, então tiraram os sapatos, soltaram o cabelo, fincaram no chão as velas fúnebres e as acenderam, conforme o uso de seus antepassados; sentaram em círculo para a lamentação, rezaram e choraram durante toda a noite. Muitos de nós ficaram na frente daquela porta; desceu dentro de nossas almas, nova para nós, a dor antiga do povo sem terra, a dor sem esperança do êxodo, a cada século renovado.
Primo Levi, "É isto um homem?"
Tradução de Luigi Del Re
Editora Rocco, 1997
Eu li este livro há uns bons dez anos, e nunca mais o reli. Ontem entendi o porquê.
em suas cálidas casas
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos,
pensem bem se isto é um homem
que trabalha no meio do barro,
que não conhece paz,
que luta por um pedaço de pão,
que morre por um sim ou por um não.
Pensem bem se isto é uma mulher,
sem cabelos e sem nome,
sem mais força para lembrar,
vazios os olhos, frio o ventre,
como um sapo no inverno.
Pensem que isto aconteceu:
e lhes mando essas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar
repitam-nas a seus filhos.
Ou senão, desmorone-se a sua casa,
a doença os torne inválidos,
os seus filhos virem o rosto para não vê-los.
Na manhã do dia 21, porém, soube-se que os judeus seriam levados no dia seguinte. Todos, sem exceção. Inclusive as crianças, os velhos, os doentes. Não se sabia para onde. A ordem era preparar-se para uma viagem de quinze dias. [...]
Para os condenados à morte, a tradição prescreve um austero cerimonial, a fim de tornar evidente que já não existe paixão nem raiva; apenas medida de justiça, triste obrigação perante a sociedade, tanto que até o verdugo pode ter piedade da vítima. Evita-se ao condenado, portanto, toda preocupação externa; a solidão lhe é concedida e, se assim ele o desejar, todo conforto espiritual; procura-se, enfim, que não perceba ao redor de si nem ódio, nem arbitrariedade, mas necessidade e justiça e, junto com a pena, o perdão.
Nada disso, porém, nos foi concedido, já que éramos muitos, e pouco o tempo. Além do mais, do que deveríamos nos arrepender ou sermos perdoados? O comissário italiano providenciou para que todos os serviços continuassem funcionando até o anúncio definitivo; na cozinha trabalhou-se como sempre, nas equipes de limpeza também; até os professores da pequena escola deram aula à noite, como nas noites anteriores. Só que as crianças não receberam dever para o dia seguinte.
A noite chegou, e todos compreenderam que olhos humanos não deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite dessas. Nenhum dos guardas, italianos ou alemães, animou-se a vir até nós para ver o que fazem os homens quando sabem que vão morrer.
Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais convincente. Uns rezaram, outros se embebedaram; mergulharam, alguns, em nefanda, derradeira paixão. As mães, porém, ficaram acordadas para preparar com esmero as provisões para a viagem, deram banho nas crianças, arrumaram as malas, e, ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar. Elas não esqueceram as fraldas, os brinquedos, os travesseiros, nem todas as pequenas coisas necessárias às crianças e que as mães conhecem tão bem. Será que vocês não fariam o mesmo? Se estivessem para ser mortos, amanhã, junto com seus filhos, será que hoje não lhes dariam de comer?
No barracão nº 6 morava o velho Gattegno, com a mulher, os filhos, os genros, as noras trabalhadeiras. [...] As mulheres foram as primeiras a ocupar-se dos preparativos da viagem, caladas e rápidas, para que não faltasse tempo para o luto e, quando tudo ficou pronto, assado o pão, amarradas as trouxas, então tiraram os sapatos, soltaram o cabelo, fincaram no chão as velas fúnebres e as acenderam, conforme o uso de seus antepassados; sentaram em círculo para a lamentação, rezaram e choraram durante toda a noite. Muitos de nós ficaram na frente daquela porta; desceu dentro de nossas almas, nova para nós, a dor antiga do povo sem terra, a dor sem esperança do êxodo, a cada século renovado.
Primo Levi, "É isto um homem?"
Tradução de Luigi Del Re
Editora Rocco, 1997
Eu li este livro há uns bons dez anos, e nunca mais o reli. Ontem entendi o porquê.
terça-feira, setembro 25, 2012
Meu querido amigo
Livrar-se do passado é uma experiência que toma tempo. Muito tempo. Já são dois meses arrumando as estantes de casa (ainda faltam duas) e cada livro que me passa pelas mãos tem que ser aberto, cheirado, inspecionado, minuciosamente manuseado - e de entre as páginas saem desde dedicatórias de Paulos, Alices, Anas, Sandras, Claudios e Leandros que não me fazem ouvir sinos até bilhetes apaixonados de pessoas para quem uma morte lenta e dolorosa seria muito pouco. Ao folhear cada livro caem pelo chão da sala desenhos rabiscados de minhas filhas, guardanapos de papel, flores secas, entradas de teatro e cinema, cartas - muitas cartas.
Estas me levam por outras estradas, e elas serpenteiam e se ramificam. São muitas - estradas e cartas e lembranças e saudades - quando resolvemos largar tudo e visitar o passado. Pena que não se escrevam mais cartas; eu mesmo tenho uma rabiscada & guardada Deus sabe onde (mentira: eu sei onde está. Uma parte, no meio das páginas de Paixão pelo saber - Uma breve história da Filosofia e a outra, dentro de A jogadora de go) para uma amiga querida. Eu costumo escrever coisas para pessoas de quem gosto em pedaços de papel, post its, guardanapos, versos de contas - tudo devidamente entesourado no livro que estou lendo no momento (ou que estiver mais à mão) e posteriormente esquecido. Assim, achar essas cartas (ou, antes, fragmentos) me remetem muito mais a quem eu era naquele momento - o remetente, na maior parte das vezes, ignoro que relevância tinha para mim. Mas o que eu escrevi - meu Deus, somos novas pessoas a cada dia, e não nos percebemos assim.
Querida Anuska
Estou bebericando o mesmo chope aguado há uma hora, e me pergunto se quero mesmo ser bióloga. Se quero ter uma carreira. Se teria coragem de largar tudo e ir-me embora, sabe-se lá para onde. Meus pés doem, estou arruinando meus joelhos, mas estou doida para ver os sapatos novos que Teresa trouxe de Madri. Não consigo ver a hora de experimentar meu novo vestido, de ensaiar os novos passos vindos diretamente da Feria de Sevilla deste ano. Virar dançarina de flamenco e enfartar meu pai.
O garçom está me olhando de cara feia. O bar está enchendo, o povo em pé na calçada, e eu com cara de intelectual entediada. Estou pensando em trancar a faculdade e fazer outra coisa, mas não sei o quê. Jornalismo? História? Linguas? Sei lá. Este é o quarto dia que mato aula e vou para a praia pensar no que vou fazer da minha vida.
"Fazer da vida" parece coisa de puta, não? "Fazer da vida", "fazer a vida". Preconceituosa, eu. Além de indecisa. E entediada. (Escrito com caneta Bic num pedaço de toalha de papel, guardado dentro de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar).
Eu em lembro dessa noite, eu me lembro desse momento.
Mas eu não me lembro quem era Anuska.
Estas me levam por outras estradas, e elas serpenteiam e se ramificam. São muitas - estradas e cartas e lembranças e saudades - quando resolvemos largar tudo e visitar o passado. Pena que não se escrevam mais cartas; eu mesmo tenho uma rabiscada & guardada Deus sabe onde (mentira: eu sei onde está. Uma parte, no meio das páginas de Paixão pelo saber - Uma breve história da Filosofia e a outra, dentro de A jogadora de go) para uma amiga querida. Eu costumo escrever coisas para pessoas de quem gosto em pedaços de papel, post its, guardanapos, versos de contas - tudo devidamente entesourado no livro que estou lendo no momento (ou que estiver mais à mão) e posteriormente esquecido. Assim, achar essas cartas (ou, antes, fragmentos) me remetem muito mais a quem eu era naquele momento - o remetente, na maior parte das vezes, ignoro que relevância tinha para mim. Mas o que eu escrevi - meu Deus, somos novas pessoas a cada dia, e não nos percebemos assim.
Querida Anuska
Estou bebericando o mesmo chope aguado há uma hora, e me pergunto se quero mesmo ser bióloga. Se quero ter uma carreira. Se teria coragem de largar tudo e ir-me embora, sabe-se lá para onde. Meus pés doem, estou arruinando meus joelhos, mas estou doida para ver os sapatos novos que Teresa trouxe de Madri. Não consigo ver a hora de experimentar meu novo vestido, de ensaiar os novos passos vindos diretamente da Feria de Sevilla deste ano. Virar dançarina de flamenco e enfartar meu pai.
O garçom está me olhando de cara feia. O bar está enchendo, o povo em pé na calçada, e eu com cara de intelectual entediada. Estou pensando em trancar a faculdade e fazer outra coisa, mas não sei o quê. Jornalismo? História? Linguas? Sei lá. Este é o quarto dia que mato aula e vou para a praia pensar no que vou fazer da minha vida.
"Fazer da vida" parece coisa de puta, não? "Fazer da vida", "fazer a vida". Preconceituosa, eu. Além de indecisa. E entediada. (Escrito com caneta Bic num pedaço de toalha de papel, guardado dentro de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar).
Eu em lembro dessa noite, eu me lembro desse momento.
Mas eu não me lembro quem era Anuska.
sexta-feira, setembro 21, 2012
Ciclos da vida
Um amigo muito muito querido uma vez me disse que, às vezes, basta uma coisa sair do lugar na vida da gente pra tudo se mover, qual uma engrenagem, para que tudo volte a se encaixar à perfeição. Essa foi a mais perfeita imagem que alguém já me descreveu para ilustrar um momento de grandes mudanças na nossa vida.
O sonho de uma existência - um negócio próprio que vai alimentar bocas e almas, além de fazer a diferença para, no mínimo, três pessoas - está se concretizando; depois de quase 11 anos numa casa que foi inicialmente ocupada num momento de desespero e fuga (o fim do meu casamento) a locadora pediu o imóvel de volta, e eu vou ter que recomeçar em outro lugar; uma sessão de desapego interminável, que já rendeu literalmente três viagens de um pequeno caminhão baú.
E uma última história: eu tive um professor incrível na faculdade. Ele, na verdade, não lecionava para as turmas de jornalismo, mas resolvi fazer uma optativa com ele. Mesmo sendo criada por pais que lêem, foi ele que me incutiu a semente da editora, da amante incondicional de livros - foi ele que me ensinou a reverenciá-los. Ele mesmo tem uma história de vida fantástica. De família judia, foi entregue a um casal italiano aos cinco anos para que escapasse do genocídio - as duas famílias eram vizinhas na Alemanha. Sua nova família veio para o Brasil logo depois, e ele nunca soube ao certo o destino de seus parentes. Pai e mãe foram deportados - ela, grávida (ele não sabia de quanto, só lembra da barriga da mãe). Tudo o que ele sabe foi contado por seus pais adotivos. Tem apenas duas imagens dos pais, fotografados com os vizinhos.
Ele sempre buscou informações, mas não de maneira consistente. Nunca manteve contato com a família adotiva. Viúvo, não teve filhos. Há dois meses foi diagnosticado com Alzheimer. Na semana passada ele chamou alguns ex-alunos com quem ainda mantém contato. Vi meu velho professor encher os olhos d'água ao pedir nossa ajuda: ele quer saber o que aconteceu antes que esqueça o pouco que lembra. Então somos agora um grupo de seis pessoas procurando por pessoas que sumiram há mais de 50 anos. Montamos nossos planos de ataque, nossas listas de contatos (graças a Deus, gigantescas e bem fornidas) e vamos à lida.
Para quem perguntou: o nome do meu professor é Emilio di Zio (o seu nome real). Se você sabe de alguém que tenha esse sobrenome me escreva, por favor.
O sonho de uma existência - um negócio próprio que vai alimentar bocas e almas, além de fazer a diferença para, no mínimo, três pessoas - está se concretizando; depois de quase 11 anos numa casa que foi inicialmente ocupada num momento de desespero e fuga (o fim do meu casamento) a locadora pediu o imóvel de volta, e eu vou ter que recomeçar em outro lugar; uma sessão de desapego interminável, que já rendeu literalmente três viagens de um pequeno caminhão baú.
E uma última história: eu tive um professor incrível na faculdade. Ele, na verdade, não lecionava para as turmas de jornalismo, mas resolvi fazer uma optativa com ele. Mesmo sendo criada por pais que lêem, foi ele que me incutiu a semente da editora, da amante incondicional de livros - foi ele que me ensinou a reverenciá-los. Ele mesmo tem uma história de vida fantástica. De família judia, foi entregue a um casal italiano aos cinco anos para que escapasse do genocídio - as duas famílias eram vizinhas na Alemanha. Sua nova família veio para o Brasil logo depois, e ele nunca soube ao certo o destino de seus parentes. Pai e mãe foram deportados - ela, grávida (ele não sabia de quanto, só lembra da barriga da mãe). Tudo o que ele sabe foi contado por seus pais adotivos. Tem apenas duas imagens dos pais, fotografados com os vizinhos.
Ele sempre buscou informações, mas não de maneira consistente. Nunca manteve contato com a família adotiva. Viúvo, não teve filhos. Há dois meses foi diagnosticado com Alzheimer. Na semana passada ele chamou alguns ex-alunos com quem ainda mantém contato. Vi meu velho professor encher os olhos d'água ao pedir nossa ajuda: ele quer saber o que aconteceu antes que esqueça o pouco que lembra. Então somos agora um grupo de seis pessoas procurando por pessoas que sumiram há mais de 50 anos. Montamos nossos planos de ataque, nossas listas de contatos (graças a Deus, gigantescas e bem fornidas) e vamos à lida.
Para quem perguntou: o nome do meu professor é Emilio di Zio (o seu nome real). Se você sabe de alguém que tenha esse sobrenome me escreva, por favor.
terça-feira, setembro 18, 2012
No fim
É preciso uma amiga muito especial te ligar do nada pra dizer que, quando uma porta se fecha, uma janela se abre. E eu quero muito acreditar nisso.
segunda-feira, setembro 17, 2012
...
Um dia você acorda depois de um fim de semana sozinha e se espreguiça na cama gigantesca, grande para somente uma pessoa, e aí bate aquela solidão doída, que dá falta de ar e deixa as mãos geladas. Sai da cama e entra na correnteza da rotina, e faz tudo igual o dia inteiro, e tem as mesmas preocupações (dinheiro criança futuro) e então você pára no meio da rua e diz chega.
Chega.
Pois é. Chega. Você estufa o peito e diz é agora, não depois. Aí sua filha mais velha, que concordou em mudar, em dar uma chance à família, manda uma mensagem por celular mais do que desaforada - depois de enfiar a mão na cara da irmã. Sua caixa de correio te traz uma ordem de despejo (porque a dona da casa resolveu fazer uma reforma sem prazo pra terminar e, pelo visto, sem prazo pra começar, também) e sua vizinha te liga pra avisar que o cachorro, que quase não anda mais, caiu e está com as patas presas sob a grade da varanda. "Você pode vir o mais rapidamente possível? Ele está gritando praticamente desde as 8h da manhã."
Aí você faz o quê? Joga o limite do Chega mais pra frente. Empurra com a barriga, finge que não viu, aumenta a capacidade de memória e aperta reiniciar. Você faz isso de novo e de novo e de novo ("Mãe, você pode ver...", "Mãe, foi ela quem começou", "Filha, pode ver pra mim...", "A senhora pode comparecer...", "Você pode mandar o dinheiro...", "O prazo de 60 dias para desocupação do imóvel...") até o dia em que o sistema não volta. E aí?
E aí não sei. Espero não estar aqui pra ver.
Chega.
Pois é. Chega. Você estufa o peito e diz é agora, não depois. Aí sua filha mais velha, que concordou em mudar, em dar uma chance à família, manda uma mensagem por celular mais do que desaforada - depois de enfiar a mão na cara da irmã. Sua caixa de correio te traz uma ordem de despejo (porque a dona da casa resolveu fazer uma reforma sem prazo pra terminar e, pelo visto, sem prazo pra começar, também) e sua vizinha te liga pra avisar que o cachorro, que quase não anda mais, caiu e está com as patas presas sob a grade da varanda. "Você pode vir o mais rapidamente possível? Ele está gritando praticamente desde as 8h da manhã."
Aí você faz o quê? Joga o limite do Chega mais pra frente. Empurra com a barriga, finge que não viu, aumenta a capacidade de memória e aperta reiniciar. Você faz isso de novo e de novo e de novo ("Mãe, você pode ver...", "Mãe, foi ela quem começou", "Filha, pode ver pra mim...", "A senhora pode comparecer...", "Você pode mandar o dinheiro...", "O prazo de 60 dias para desocupação do imóvel...") até o dia em que o sistema não volta. E aí?
E aí não sei. Espero não estar aqui pra ver.
terça-feira, setembro 11, 2012
...
Sempre me disseram que adolescência pode ser dor e delícia. Eu tenho os dois. A delícia com a caçula, a dor com a mais velha. Todo santo dia, abrir os olhos significa a luta - para ter a última palavra, para o desafio mudo, para a malcriação velada, para o desrespeito sussurado pelas costas. "É fase", todo mundo me diz.
A rédea curta é imediatamente solta e lançada ao vento na casa do pai. TV até as 3h da madrugada e sem autocensura no controle remoto (afinal, ela tem 13 anos e fica sozinha, enquanto a casa dorme), netbook a mil durante todo o fim de semana em qualquer ponto do apartamento.
Ontem ela voltou do fim de semana com meu ex me chamando pelo primeiro nome. Respostas tortas, tom de voz petulante, agredindo verbalmente a irmã ("gorda" foi o mais suave que saiu daquela boca). Então, no elevador da casa dos meus pais, dei meia dúzia de palmadas nela. Batia sem pensar, sentindo uma raiva cega, espumante. Por um momento, eu odiei aquela menina. Minha filha adorada. Saí daquele cubículo, parei um táxi, nos enfiamos as três e ela, de mochila e uniforme, foi despejada na portaria do trabalho do pai. Assim que ele apontou na porta do elevador mandei o táxi seguir.
Cheguei em casa e chorei. Minha caçula chorou comigo o meu fracasso. Não sei se minha filha foi à escola. Não sei se tem roupas limpas, se tomou café da manhã, se tem o material necessário para assistir aula, hoje. Não sei de nada.
Só sei que sou humana, e que isso não me consola. Deveria ser mãe, antes de tudo.
quinta-feira, setembro 06, 2012
quarta-feira, setembro 05, 2012
Então

Chega uma hora em que não temos mais nada a dizer. Triste. Faz tempo que eu não tenho o que dizer. "Então fique de boca fechada", já dizia a minha avó. Mas esse limbo existencial não é bonito, não é pitoresco, não é divertido. É um tédio. Porque eu sempre fui acostumada às grandes paixões, aos dramas intensos, à adrenalina "o que vai acontecer agora", ao amor que arrebata, ao frio na barriga. Sempre fui acostumada ao diferente. A diferença hoje é que tudo é sempre igual - e eu não estou me importando muito.
Claro que tem o meu negócio, o buraco no teto do meu quarto, o tumor do meu pai, os planos para amanhã - não O Amanhã, mas o dia seguinte a este. Eu olho o que as outras pessoas escrevem e digo puxa ele está vivendo, ela está progredindo, eles estão se divertindo. Olho a lista dos seguidores e não consigo imaginar por que diabos Zander Catta Preta é meu seguidor.
Ontem achei meu mp3 sumido há uns bons três anos. Viva eu.
Chata, a vida.
segunda-feira, setembro 03, 2012
Falta de medicação
Deve existir uma explicação lógica, plausível e bem razoável para alguém acordar numa bela manhã com uma vontade irresistível de aprender pole dance.
sexta-feira, agosto 24, 2012
Pelo fim da ditadura do espanador
Pra quem perdeu a novidade:
Como vou ter que trocar o forro da casa toda, preciso desentulhar os cômodos o mais rapidamente possível. Além de doações (muitos clássicos, coleções, enciclopédias atuais, livros infantis; muita roupa, uma cama de casal e louça até dizer chega) pretendo vender metade da minha biblioteca, que está chegando a 4 mil volumes - e eu ando de saco cheio de tirar pó de tudo isso todo fim de semana. Unindo o útil ao agradável, estou passando uma porção de livros nos cobres - a maior parte, ficção. Tem Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Jô Soares, Michael Crichton, Amélie Nothomb, Salman Rushdie e outros. Qualquer livro a R$ 10. Eu ainda tenho muuuita coisa para subir, incluindo não ficção, livros de arte e fotografia e alguns infanto-juvenis.
Dá uma olhada lá: www.leituraseminova.blogspot.com. Eu quero me livrar dos livros, então fazemos qualquer negócio, e eu ainda mando agradinhos e brindes.
PS. Então. Somos duas. A Simone também perdeu filha e marido debaixo das toneladas de livros na casa dela. Se você quiser espiar a seleção que ela pôs na banquinha da calçada dê uma olhada no Flickr da moça.
quinta-feira, agosto 16, 2012
St. Therese entre Chats
Essa é a história não de um, mas de dois gatinhos que subiram no telhado. O namoro tinha começado havia dias. Obviamente, ninguém da vizinhança dormia, mas tudo o que importa nessas horas é o amor. L'amour. Então. Os dois gatinhos viviam numa casa com mais dez bichanos. Nenhuma privacidade.
A gata era linda, linda. E o gatinho tinha ciúmes dela. Uma noite, ele sugeriu: "Que tal irmos para o telhado? Está uma noite linda, não muito fria, e teremos a lua como companhia!" A gatinha cedeu. Afinal, ele era charmoso, bonitão, e ainda por cima trazia uma coleirinha vermelha que era tudo. Subiram então os dois. No meio do caminho a gata, num acesso de timidez e pudor, pediu para que fossem para o forro, porque não se sentia bem exposta. O gato, querendo que a vizinhança comprovasse seu poder de sedução, não gostou muito da ideia.
"Vamos para o telhado, amor", insistiu ele.
"Quero ficar no forro", teimou ela.
"Telhado", disse ele.
"Forro", retrucou ela.
Ele pegou-a pela pata, tentando levá-la para cima. Ela tentou se desvencilhar, puxando a pata para baixo. Nessa luta os dois se desequilibraram e caíram da viga onde estavam.
E atravessaram o forro.
E se estatelaram no meio do meu quarto, no meio de uma nuvem de poeira de 137 anos e pedaços de madeira.
Essa é a história triste de como uma noite, que começou com "miaus" melancólicos, se transformou num festival de "miarrrrrrrr" e "psttstststststst!" e terminou com um buraco gigantesco no teto do meu quarto. E as pessoas não entendem por que eu detesto gatos.
Então. É por isso.
quinta-feira, agosto 09, 2012
London 1908
- Vem, mãe!
- Tô indo! (colabora, cachorro!)
- Vai começar!
- Tô pingando o ouvido do cachorro! (Pára, bicho!)
- Mãe!
- Cheguei!
- Agora cabô.
- Oi?
- Cabô.
- Comassim?
- Agora só em 2016.
...
Acordada desde as 5h esperando a prova. Bandeja de café da manhã, pronta. Cachorro medicado, check. Meninas na escola, ok.
- Tropeça Sicranuk Bertranak logo depois da largada - e ele está fora dos Jogos!
...
- Pois é, Fulano, muito corretas as apresentações até agora mas está faltando ainda alguma coisa que mostre que os atletas estão nas Olimpíadas, não?
- É sim, Beltrana. Agora é a vez de Sicranovsly Beltranovich. Ela que está na 17ª posição do ranking teve uma campanha regular no ano pass...zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz... SENSACIONAL! (ronc... o quê? o quê?) Em mais de um século de Olimpíadas jamais um atleta fez um movimento como esse! (qual? qual?) Entra para a História dos Jogos esse momento e-mo-ci-o-nan-te! (onde? como?) Agora você acompanha as semifinais do cuspe em distância.
terça-feira, julho 31, 2012
Vergonha alheia
Fiquei três semanas trabalhando em casa (sem internet) e, pra não ser a última a saber do fim do mundo, comecei a assistir aos jornais da Globonews. Dureza. Fico pensando em tudo o que eu aprendi na faculdade. Nas aulas do Nilson Lage. Zuenir Ventura & companhia. Meus anos trabalhando em duas grandes redações. Leilane comentando o massacre no cinema. "Mas a gente não entende como acontece isso, não? Será que é algum problema mental ou ele é assim? É difícil comentar." Oi? Comentar? Você tem OPINIÃO sobre o fato?
Pois é, todo mundo opina. "Que coisa", "Que desagradável", "Que ridículo", "Não consigo entender". Os especialistas que são chamados a dar entrevista não dão entrevista: somente seguem o "Mas o senhor não acha que isso e aquilo...?" com uma cara de constrangimento total. O correspondente nos EUA parecia do E! News (que, perto desses jornais, tá batendo um bolão - afinal, eles ENTENDEM do que estão falando).
E os textos poéticos? As musiquinhas? As caras fúnebres quando o assunto é sério e tããão felizes quando a primavera chega?
Um dia um amigo meu me perguntou se eu queria voltar pra uma redação.
Nem morta.
segunda-feira, julho 30, 2012
Muito
Existe todo um orgulho em suar dois dias, ferir os dedos, xingar a quarta geração de deus-sabe-quem e terminar, sozinha, a montagem de um beliche.
Usando somente um canivete.
Usando somente um canivete.
quinta-feira, julho 05, 2012
Há 11 anos

As discussões com a irmã (uma das que sofreram lavagem cerebral, aka fã de Crepúsculo) não terminam nunca. Porque ela não se conforma: para minha pequena, nada de bom veio depois da saga de Harry Potter. Ela ama todos os personagens; sabe os feitiços de cor, os diálogos, o nome de cada inimigo, aliado, neutro ou covarde dos filmes. E, quando começou a ler as histórias, se encantou em descobrir o universo inexplorado que é um livro. ("Mamãe, os livros são muuuito melhores que os filmes!", disse o orgulho-de-mami).
Ela se preocupa com a minha saúde, com a minha velhice. Toda noite vem checar a minha lingua pra ver se eu comi direito durante o dia. De manhã ainda exige toda uma estratégia de guerra para arrancá-la da cama, assim como um discurso muito bem engedrado para convencê-la a não usar um short tão curto, uma blusa tão colada - ela, com aquele corpo de mulata farta e brejeira, ainda merece alguns anos de inocência.
Já são 11 anos de Catatau. Feliz aniversário, minha flor. Para você, minha querida Joaninha, há muita magia ainda por vir.
quarta-feira, julho 04, 2012
Sem noção
Eu disse e repito: quanto mais velha fico, menos paciência tenho. Carros que param na faixa de pedestres ou que avançam o sinal usualmente já são premiados com um "Idiota!" - a depender do meu humor, dito entredentes ou em alto e bom som. Mas o que me espanta é a desenvoltura com que as pessoas estraçalham as divisas entre o seu e o direito alheio.
Há poucos minutos desceu a rua uma manifestação de professores. Cantavam "Pra não dizer que não falei das flores". Eu, a espírito-de-porto encarnada em total esplendor, me faço de desentendida e pergunto pra um mestre "Nossa, que música forte! É de vocês?" Resposta: "É música oficial de passeata. Quem fez deve ter sido algum funcionário em greve, e aí pegou!" E aí pegou, pensei eu antes de quase ser atropelada por uma faixa "Abaixo a ditadura". E pára o carro de som na porta do hospital. "Vamos gritar o mais alto pro governador ouvir: Fora, Cabral!" E o povo: "Fora, Cabral!" E o cara no som, "Abaixo o capitalismo espoliante!" E o povo, "Abaixo o capitalismo espoliante! Êê, fora, Cabral! Êê, fora Cabral!". Debaixo das janelas do hospital. Por meia hora.
"Moça, vocês estão na frente do hospital! Não dá pra fazer isso mais abaixo na rua?
"Aqui é o mais perto do palácio que dá pra chegar. Os doentes aguentam!"
Os doentes aguentam.
Mas eu não. Tô cheia.
Há poucos minutos desceu a rua uma manifestação de professores. Cantavam "Pra não dizer que não falei das flores". Eu, a espírito-de-porto encarnada em total esplendor, me faço de desentendida e pergunto pra um mestre "Nossa, que música forte! É de vocês?" Resposta: "É música oficial de passeata. Quem fez deve ter sido algum funcionário em greve, e aí pegou!" E aí pegou, pensei eu antes de quase ser atropelada por uma faixa "Abaixo a ditadura". E pára o carro de som na porta do hospital. "Vamos gritar o mais alto pro governador ouvir: Fora, Cabral!" E o povo: "Fora, Cabral!" E o cara no som, "Abaixo o capitalismo espoliante!" E o povo, "Abaixo o capitalismo espoliante! Êê, fora, Cabral! Êê, fora Cabral!". Debaixo das janelas do hospital. Por meia hora.
"Moça, vocês estão na frente do hospital! Não dá pra fazer isso mais abaixo na rua?
"Aqui é o mais perto do palácio que dá pra chegar. Os doentes aguentam!"
Os doentes aguentam.
Mas eu não. Tô cheia.
terça-feira, julho 03, 2012
...
Tem momentos na vida que realmente tudo é (tem que ser), como diz a música, me, myself and I. Mas quem é mãe sabe como é dureza largar velhos hábitos e admitir que, ora bolas, você ainda é um ser humano.
segunda-feira, julho 02, 2012
Vício Maldito
Como eu disse lá no site da Simone, estamos as três viciadas em Once upon a time. Fizemos uma maratona lá em casa (cada uma no seu notebook) e vimos toda a primeira temporada. Depois, fizemos algumas considerações e fechamos que:
* Nós amamos Mr. Gold!
* David faz tanta m. que agora a gente só chama o coitado de Príncipe Charmento (quando ele é o David).
* Chapeuzinho Vermelho é ídola da Catatau ("Mesmo ela se vestindo que nem uma piriguete!").
* Sentimos pena de Regina. A vida sacaneou a pobre tanto que ela agora sacaneia todo mundo.
* Emma é quem queremos ser quando crescermos.
Que coisa horrível de se fazer com crianças inocentes e altamente impressionáveis.
O momento é tudo
Qual a hora certa de deixar a filha voltar sozinha da escola? Andar de ônibus? Ir ao shopping sozinha com as amigas? Pra fazer a cópia da chave de casa? Deixar voltar mais tarde de uma festa? Depilar as pernas? Usar salto? Estender o horário de dormir? Contar coisas sobre o seu passado? Dividir (muitas) incertezas sobre o futuro? Parar de comprar tanto cor-de-rosa?
Ando tão perdida...
Ando tão perdida...
sexta-feira, junho 22, 2012
O que não nos mata...
... nos fortalece. Há meia hora voltei do supermercado carregada. Sozinha na calçada, fui me desviando do pessoal arrumado, cheiroso e fashion indo para o cinema, beber, namorar. E eu abaixei a cabeça e segui. Houve um tempo que isso doía, e muito, Hoje, não. Porque, infelizmente, a gente se acostuma. A achar que mãe é assexuada. Que dona-de-casa dorme cedo, se depila e faz as unhas em ocasiões especiais e só compra roupa quando necessário. Compra de impulso, só para os filhos. O dinheiro guardado é para gastar com coisas úteis, em emergências, no futuro. Porque, sejamos francos, virando o cabo dos 45 anos, o futuro não é tão comprido, tão longo assim. Não é tão promissor.
O que não nos mata nos fortalece. Eu hoje comprei um perfume para mim. Vagabundo, pequeno, comum, entre tantos vagabundos, pequenos e comuns expostos naquela prateleira do supermercado. Mas é meu. Meu supérfluo. Minha besteira, meu dinheiro jogado fora - mas um dinheiro que jamais foi tão bem empregado, em toda a minha vida.
O que não nos mata nos fortalece. Eu hoje comprei um perfume para mim. Vagabundo, pequeno, comum, entre tantos vagabundos, pequenos e comuns expostos naquela prateleira do supermercado. Mas é meu. Meu supérfluo. Minha besteira, meu dinheiro jogado fora - mas um dinheiro que jamais foi tão bem empregado, em toda a minha vida.
quarta-feira, junho 20, 2012
Há 13 anos
Ela odeia (ou "Vaza, mãe"):
Tomar café da manhã;
Roupa apertada/piniquenta/curta (aka minissaia e qualquer-coisa-de-lastex);
Dormir cedo;
Que falem mal de Crepúsculo e de todos os envolvidos, sejam atores/equipe técnica ou qualquer um que esteja a pelo menos 245 passos de separação do casal Robsten;
Creme de milho;
Matemática;
Usar aparelho.
Ela ama (ou "Que mico, mãe!"):
Brincar de Barbie, Polly, Littlest Pet Shop (mas tem vergonha);
Sair pra passear pela casa empurrando carrinho de boneca com a irmã (mas tem vergonha);
Sentar no meu colo pra ganhar um monte de beijos (mas tem vergonha);
Quando eu falo bem alto o seu apelido (mas tem vergonha);
Ver as fotos de quando era bebê (mas tem vergonha);
Que eu arrume a mochila e borde seu nome nas bolsas, nas necessaires, nas bolsas com material da ginástica (mas tem vergonha);
Que eu lembre como ela é linda e fofa e cheirosa e meiguinha (mas tem vergonha).
Os 13 melhores anos da minha vida. Parabéns, minha flor. Mesmo sendo agora Maria para o mundo, você ainda é - e sempre será - minha Zé Colméia.
quarta-feira, junho 13, 2012
A Deus pertence
O que é preciso fazer. Às vezes só em pensar você se sente esmagada - a palavra é essa, esmagada - pela lista de tarefas. Mesmo que esteja de olhos fechados, deitada na cama, no escuro, e são 3h17m da madrugada e você não consegue dormir porque a lista de coisas a fazer não termina. E se o dia tivesse 60 horas ainda sim a lista não ia diminuir.
Saí da revista - em boa hora, porque ela não anda bem das pernas e era isso ou isso. O dinheiro ganho (não foi muito) já foi quase todo em roupa para as meninas (sutiãs, calcinhas, sapatos, calças compridas), no tratamento do cachorro, na troca inadiável do encanamento do banheiro. E então passo hoas debruçada sobre o orçamento familiar vendo o que é possível cortar, remanejar, adiar, desistir. Ver se é vantajoso levar o empréstimo pedido numa urgência médica para um banco com juros menores ou se gasto menos tirando as meninas do integral e fornecendo as refeições em casa.
Na outra planilha, o andamento do projeto. A seleção dos livros. O modelo do site. A estratégia de divulgação. A escolha dos textos das colunas. Os planos a curto, médio e longo prazo. Os anunciantes. A pergunta que não quer calar: o quanto ele tem que render pra eu, ao menos, fechar as contas no fim do mês.
Saí da revista - em boa hora, porque ela não anda bem das pernas e era isso ou isso. O dinheiro ganho (não foi muito) já foi quase todo em roupa para as meninas (sutiãs, calcinhas, sapatos, calças compridas), no tratamento do cachorro, na troca inadiável do encanamento do banheiro. E então passo hoas debruçada sobre o orçamento familiar vendo o que é possível cortar, remanejar, adiar, desistir. Ver se é vantajoso levar o empréstimo pedido numa urgência médica para um banco com juros menores ou se gasto menos tirando as meninas do integral e fornecendo as refeições em casa.
Na outra planilha, o andamento do projeto. A seleção dos livros. O modelo do site. A estratégia de divulgação. A escolha dos textos das colunas. Os planos a curto, médio e longo prazo. Os anunciantes. A pergunta que não quer calar: o quanto ele tem que render pra eu, ao menos, fechar as contas no fim do mês.
segunda-feira, junho 04, 2012
Mão na massa
Começar um negócio é começar uma vida. É rearrumar a rotina, realocar prioridades. Mas mesmo nesse turbilhão de ideias, de coisas-a-fazer, mesmo nessa necessidade urgente de trocar pensamentos doidos com a minha sócia - sim, eu tenho uma sócia, tão sonhadora como eu e de um tal grau de maturidade e doçura que eu me sinto feliz por ter arrumado tempo pra responder àquela mensagem de ajuda pra um trabalho - eu sinto falta de ter alguém que me pergunte "E aí, o projeto está andando?".
Lista de livros, modelos de sites, relação de profissionais que preciso contatar. Meu armário está com cupins, o pedreiro me abandonou (e a mim, que fiz juras de amor eterno a ele, só sobraram sacos de areia) e a operação desapego continua furiosamente em andamento.
Quase 46 anos, e contando.
Lista de livros, modelos de sites, relação de profissionais que preciso contatar. Meu armário está com cupins, o pedreiro me abandonou (e a mim, que fiz juras de amor eterno a ele, só sobraram sacos de areia) e a operação desapego continua furiosamente em andamento.
Quase 46 anos, e contando.
quinta-feira, maio 31, 2012
Decotes
Zé Colméia tem seios. Grandes seios que, absolutamente, não combinam com ela. Porque, veja bem, ela gostaria que eles fossem atarraxados, sabe? Aí poderia escolher usá-los ou não. Na escola - nada de seios na escola. Atrapalham, doem quando ela corre, e os meninos adoram dizer que ela usa enchimento no sutiã. "Eles vão ver, um dia eu me encho e levanto a camiseta e mostro pra eles!" Este tem sido o meu pesadelo mais recorrente: ela subindo a blusa no meio do pátio pra provar que ali é tudo natural - e os bispos da igreja metodista vendo tudo lá da pastoral. Oremos.
Enfim. Zé Colméia tem seios. Os sutiãs que eu comprei pra ela e nada são the same thing. Entonces (estamos trilingues hoje) lá fui procurar um modelo sem frescuras que impedisse que aquilo tudo furasse a camiseta da escola. Dos 45.490.572 tipos que a vendedora me mostrou, achei dois modelos - atenção: dois - que não eram de bojo forrado com enchimento para subir/empinar/crescer/massagear/impedir o decaimento dos seios. Dois modelos.
Igual aos xampus (você consegue comprar xampu que só lave o cabelo, sem efeitos 3D blue-ray? Eu, não) você não encontra sutiã que apenas sirva de porta-seios.
Eu estou ficando pra trás. E sem ninguém pra me dar uma carona.
Enfim. Zé Colméia tem seios. Os sutiãs que eu comprei pra ela e nada são the same thing. Entonces (estamos trilingues hoje) lá fui procurar um modelo sem frescuras que impedisse que aquilo tudo furasse a camiseta da escola. Dos 45.490.572 tipos que a vendedora me mostrou, achei dois modelos - atenção: dois - que não eram de bojo forrado com enchimento para subir/empinar/crescer/massagear/impedir o decaimento dos seios. Dois modelos.
Igual aos xampus (você consegue comprar xampu que só lave o cabelo, sem efeitos 3D blue-ray? Eu, não) você não encontra sutiã que apenas sirva de porta-seios.
Eu estou ficando pra trás. E sem ninguém pra me dar uma carona.
sexta-feira, maio 18, 2012
Quarto do pânico
O que mais tem me impressionado nesses últimos dias é o quanto eu acumulei. Essa é a palavra: acumulei. Não joguei nada fora. As desculpas foram variadas, infinitas - criativa e largamente usadas nos últimos 15 anos da minha vida. "Depois eu vejo isso, quando tudo acalmar depois do casamento", "Eu posso precisar disso logo, logo", "Não dá pra fazer tudo ao mesmo tempo, com um bebê em casa", "Não dá pra separar nada do jeito que eu estou enjoando/inchando/ parindo", "Não tenho tempo nem pra comer com duas crianças tão pequenas e mais o emprego", "Não quero mexer nada, só deixar o divórcio passar", "Trabalhando feito uma condenada não quero nem pensar em arrumação nos fins de semana", "Quando as meninas forem mais crescidas eu encaro essa arrumação", "Tenho que perder só cinco quilos pra isso caber de novo", "Essas saias custaram uma fortuna, com certeza vão voltar à moda", "Eu não tenho ainda um orfanato que realmente esteja precisando dessas doações", "Não tenho quem leve toda essa louça embora", "Não quero me desfazer por enquanto dessa cama", "Não acho quem desmonte e aceite consertar essa casinha de madeira das meninas", "Não estou com saco de mexer nisso".
O quarto onde eu montei meu escritório na casa dos meus pais agora vive trancado. Ele guarda atrás da porta 15 anos de total e absoluta inércia sobre o que fazer com o que não me serve mais - objetos, roupas, sapatos, móveis, louças, eletrodomésticos, lembranças, objetivos, desejos acumulados e que eu não sei nem por onde começar a me desfazer.
O quarto onde eu montei meu escritório na casa dos meus pais agora vive trancado. Ele guarda atrás da porta 15 anos de total e absoluta inércia sobre o que fazer com o que não me serve mais - objetos, roupas, sapatos, móveis, louças, eletrodomésticos, lembranças, objetivos, desejos acumulados e que eu não sei nem por onde começar a me desfazer.
quinta-feira, maio 17, 2012
Daqui a pouco
Querer fazer é uma coisa. Ter a ideia, todos os detalhes na cabeça, a evolução natural do negócio até aquela loja ali na galeria - eu passo por ela quase todo dia, e as meninas já falam "olha mãe, ninguém alugou ainda" (quando o cartaz de "aluga-se" uma vez sumiu da vitrine, as duas olharam pra mim com cara de pêsames, e eu juro que o beicinho da Catatau deu aquela tremida básica de canceriana) - então, tudo no seu cérebro, menos como começar.
Bom, vai ser um site, óbvio. A única ferramenta que eu conheço é esse blogspot que vos fala. Eu quero fazer no Wordpress, e depois, quando (e se) o negócio decolar, migrar para um site com domínio pago etc e tal. Os conformes. Mas fazer todo o layout, procurar as imagens, colocar os textos, dividir as seções. Montar a coisa. Pensar que, se der certo, eu vou ter que dar adeus à vida de assalariada. Porque as duas coisas eu não vou conseguir fazer. E ter que vender o produto - o site e a ideia dele - pra conseguir que ele seja rentável.
Medo. Muito, MUITO medo. Eu nunca fiz nada pra mim dessa envergadura. Mas ao mesmo tempo eu faço em dois meses 46 anos. Não tenho casa própria, não tenho dinheiro guardado. Se eu morrer amanhã meus pais vão ter que pagar meu enterro. Vou deixar dívidas de herança para as minhas filhas. Não me relaciono com ninguém já quase uma década. O que diabos eu estou esperando pra realizar um sonho meu?
"Eu não sei", sempre diz sorrindo o diabo da procrastinação.
Bom, vai ser um site, óbvio. A única ferramenta que eu conheço é esse blogspot que vos fala. Eu quero fazer no Wordpress, e depois, quando (e se) o negócio decolar, migrar para um site com domínio pago etc e tal. Os conformes. Mas fazer todo o layout, procurar as imagens, colocar os textos, dividir as seções. Montar a coisa. Pensar que, se der certo, eu vou ter que dar adeus à vida de assalariada. Porque as duas coisas eu não vou conseguir fazer. E ter que vender o produto - o site e a ideia dele - pra conseguir que ele seja rentável.
Medo. Muito, MUITO medo. Eu nunca fiz nada pra mim dessa envergadura. Mas ao mesmo tempo eu faço em dois meses 46 anos. Não tenho casa própria, não tenho dinheiro guardado. Se eu morrer amanhã meus pais vão ter que pagar meu enterro. Vou deixar dívidas de herança para as minhas filhas. Não me relaciono com ninguém já quase uma década. O que diabos eu estou esperando pra realizar um sonho meu?
"Eu não sei", sempre diz sorrindo o diabo da procrastinação.
terça-feira, maio 15, 2012
Miss Hyde
Como é possível - você, que já passou por isso, me explica por favor - que aquela menina linda, rechonchuda, que amava o Urso da Casa Azul, adorava vestidos blusas calças shorts macacões sapatos bolsas casacos tudo cor-de-rosa e acordava sorrindo pra vida virou essa criatura monstr..., digo, adolescente petulante arrogante desbocada adoradora de Crepúsculo?
Socorro - é sério. Socorro.
Socorro - é sério. Socorro.
segunda-feira, maio 14, 2012
Demorô
As coisas mudam; eu mudei. E isso deve acontecer com todo mundo, porque não deve ser somente eu - pelamordedeus. Já tem muito tempo - e bota tempo nisso - que eu quero ter prazer no trabalho mais do que ganhar dinheiro. Eu quero realizar alguma coisa. Se eu ganhar dinheiro com isso, oba oba.
Esta semana vou começar a fazer a página. Vai ser pra ler, pra refletir, e não pra ganhar dinheiro - provavelmente pra ganhar dinheiro eu vou ter que ter um sócio ou uma sócia que saiba fazer isso, porque eu não sei. Por um tempo, provavelmente outros vão faturar. Eu sei tornar reais os sonhos. Eu sei planejar, eu sei discutir, eu sei desenhar e arrumar. Infelizmente, eu não sei fazer sonhos renderem dinheiro. Mas mesmo que eu jamais ganhe um tostão com ele, ele vai se realizar. Demorando um mês ou um ano, você vai receber convite virtual pra ir lá e palpitar.
Saudades docês.
Esta semana vou começar a fazer a página. Vai ser pra ler, pra refletir, e não pra ganhar dinheiro - provavelmente pra ganhar dinheiro eu vou ter que ter um sócio ou uma sócia que saiba fazer isso, porque eu não sei. Por um tempo, provavelmente outros vão faturar. Eu sei tornar reais os sonhos. Eu sei planejar, eu sei discutir, eu sei desenhar e arrumar. Infelizmente, eu não sei fazer sonhos renderem dinheiro. Mas mesmo que eu jamais ganhe um tostão com ele, ele vai se realizar. Demorando um mês ou um ano, você vai receber convite virtual pra ir lá e palpitar.
Saudades docês.
terça-feira, abril 03, 2012
Um novo dia
Muitas mudanças. Ainda não sei se para o bem ou para o mal. Só sei que jamais estive tão cheia de energia e expectativa quanto ao meu futuro. E tempo pra escrever? Tempo eu tenho, não tenho é internet. Thanks, Virtua.
quinta-feira, fevereiro 02, 2012
Miudezas
Velhinhos de Ipanema não são como os outros velhinhos. Não, de jeito nenhum. Eles têm apuro em se vestir. Têm sorrisos luminosos, olhos brilhantes, e são extremamente cavalheiros. Dão passagem, abrem portas, dizem "por gentileza, senhorita" mesmo que você esteja com uma barriga de 13 meses de gravidez.
Eu amo os velhinhos de Ipanema - as velhinhas, porém, usam muita sombra azul. Uma pena.
Como as meninas estão com o pai, comecei a trocar o dia pela noite. Tenho um horário livre, então chego à revista ao meio-dia e agora, nove da noite, ainda estou na redação. Todo mundo foi embora. A noite pra mim sempre foi melhor do que o dia. Meu trabalho rende mais; o que eu amo fica mais atraente à noite, e a sensação que eu estou sozinha no mundo é preciosa. Noites têm cheiro diferente. Sou uma criatura lunar, dizem os astrólogos sobre os cancerianos.
Meu golden retriever de 14 anos está cego de um dos olhos, e mal enxerga do outro. Demora a subir as ancas quando se levanta, mas com que orgulho ele empina as orelhas e late quando sente uma sombra diferente, um cheiro que não é o meu. Levei-o ao veterinário; quando chegamos, foi como se um alto-falante anunciasse Elvis is in the building. Ele é grande, musculoso (está pesando 52 quilos!), dourado, lustroso. Ele é majestoso, o meu gato laranja.
Ouço um recado que as meninas deixaram na caixa postal do meu celular. Não reconheço a voz das duas. Em um mês já não reconheço a voz das minhas filhas. Alguém pode por gentileza cutucar o motorneiro e pedir que ele pare o bonde que eu quero descer e voltar à estação? Lá, onde as duas eram meninas que amavam sapatos de bichinhos, vestidos de pregas e muito cor-de-rosa? Pode voltar, por favor? Eu esqueci uma coisa no banco - a infância delas!
Queria muito me apaixonar de novo. Mas ao mesmo tempo penso na canseira que isso provoca. O relacionamento que pressupõe confiar no outro, e aprender a aceitar, a acertar e errar, a lidar com outra vida. E sinto uma onda tão grande de medo que me apavoro e, igual a uma galinha, volto a ciscar em volta do meu engradadinho.
Lealdade, fidelidade, confiança, certeza, amor. De mão beijada não dá.
Eu amo os velhinhos de Ipanema - as velhinhas, porém, usam muita sombra azul. Uma pena.
Como as meninas estão com o pai, comecei a trocar o dia pela noite. Tenho um horário livre, então chego à revista ao meio-dia e agora, nove da noite, ainda estou na redação. Todo mundo foi embora. A noite pra mim sempre foi melhor do que o dia. Meu trabalho rende mais; o que eu amo fica mais atraente à noite, e a sensação que eu estou sozinha no mundo é preciosa. Noites têm cheiro diferente. Sou uma criatura lunar, dizem os astrólogos sobre os cancerianos.
Meu golden retriever de 14 anos está cego de um dos olhos, e mal enxerga do outro. Demora a subir as ancas quando se levanta, mas com que orgulho ele empina as orelhas e late quando sente uma sombra diferente, um cheiro que não é o meu. Levei-o ao veterinário; quando chegamos, foi como se um alto-falante anunciasse Elvis is in the building. Ele é grande, musculoso (está pesando 52 quilos!), dourado, lustroso. Ele é majestoso, o meu gato laranja.
Ouço um recado que as meninas deixaram na caixa postal do meu celular. Não reconheço a voz das duas. Em um mês já não reconheço a voz das minhas filhas. Alguém pode por gentileza cutucar o motorneiro e pedir que ele pare o bonde que eu quero descer e voltar à estação? Lá, onde as duas eram meninas que amavam sapatos de bichinhos, vestidos de pregas e muito cor-de-rosa? Pode voltar, por favor? Eu esqueci uma coisa no banco - a infância delas!
Queria muito me apaixonar de novo. Mas ao mesmo tempo penso na canseira que isso provoca. O relacionamento que pressupõe confiar no outro, e aprender a aceitar, a acertar e errar, a lidar com outra vida. E sinto uma onda tão grande de medo que me apavoro e, igual a uma galinha, volto a ciscar em volta do meu engradadinho.
Lealdade, fidelidade, confiança, certeza, amor. De mão beijada não dá.
quinta-feira, janeiro 26, 2012
...
Num dos prédios que desabaram hoje no Centro do Rio ficava o nosso escritório de contabilidade. A revista perdeu toda a sua documentação fiscal. O gerente financeiro conseguiu ligar para um dos celulares da empresa - do filho do casal que é dono do escritório - e, depois disso, ninguém conseguiu mais trabalhar: não dava para esquecer a voz do rapaz dizendo "Não sei onde está minha mãe!"
quarta-feira, janeiro 25, 2012
De volta para o futuro

Pra escrever num blog a gente tem que começar a pensar em forma de post. Pensar pra se adequar a uma ferramenta de convívio social. Parece doideira, mas não é. E a maneira como eu me sinto chegando a essa conclusão é mais doida ainda. Porque meu celular de quatro anos atrás só faz e recebe chamadas. Só. Não tem câmera, bluetooth, internet, filmadora, conexão com redes sociais, gravador, comando de voz. Não tem nem capa nem lavadora de pratos via download na página do fabricante. Não roda Android, muito menos C3PO.
Aplicativos são, para mim, tão familiares como o Códice de Dresden - pra você ver que não basta fazer esquema com desenhos coloridos. Não entendo quem quer smartphone e não consegue nem migrar a agenda de um telefone pro outro (né dona Cris?). Sou daquelas que lêem manual de instrução e bula de remédio frente-e-verso, incluindo as letras miúdas do rótulos de xampu.
Eu me sinto ficando pra trás, dando tchauzinho (só de dedinho, porque estamos já nos 45 do segundo tempo, com um pé na prorrogação) pra quem já anda em velocidade de dobra. Funcionou, tá lindo. Não precisa complicar.
Estou entrando na fase em que o cérebro progride e o corpo declina. O pensamento não acompanha a paciência, e vice-versa. Os neurônios vão, mas o resto das células ficam. É um descolamento esquisito, que só quem está nessa dimensão percebe.
Tô voando, eu sei.
terça-feira, janeiro 24, 2012
Fim do expediente
Faz tempo. Muito tempo. Mas o trabalho anda muito (graças!), as meninas estão viajando com o pai e o pedreiro botou meu banheiro abaixo, mas por uma boa causa: trocar um encanamento de cem anos. E o melhor: eu posso pagar!
Aê. A vida vai andando, e parece que 2012 vai ser um bom ano. Ninguém me disse, ninguém me contou, mas eu estou com a sensação que. As contas continuam chegando, as meninas continuam crescendo, eu continuo envelhecendo, meus pais, meus cachorros, a casa. Ficando velha sem paciência, com a pachorra de gastar as viagens de metrô analisando e me perguntando se um dia sobrará homem sobre a terra que NÃO se depile. Que deixe os braços com aqueles cabelos negros enroscando deliciosamente em volta da pulseira do relógio.
Talvez eu vá a Nova York em março, ou a Madri em fevereiro. Mas eu queria mesmo era ir pra Friburgo, ver meus pais. Ou viajar com as meninas para o sul - cê me espera, Dita?
Então. É isso. Todo mundo da revista foi embora, e eu estou triste porque não vou mais poder baixar minhas séries pra assistir em casa comendo Pringles sabor vulcão ardido. Já está ficando escuro e eu vou começar o caminho pro meu morro - criticando as roupas do mulherio no metrô, ensinando pela enésima vez pra algum turista pra que lado fica a Praia de Ipanema e pensando em como eu sou uma mulher de sorte e, hoje, feliz.
Aê. A vida vai andando, e parece que 2012 vai ser um bom ano. Ninguém me disse, ninguém me contou, mas eu estou com a sensação que. As contas continuam chegando, as meninas continuam crescendo, eu continuo envelhecendo, meus pais, meus cachorros, a casa. Ficando velha sem paciência, com a pachorra de gastar as viagens de metrô analisando e me perguntando se um dia sobrará homem sobre a terra que NÃO se depile. Que deixe os braços com aqueles cabelos negros enroscando deliciosamente em volta da pulseira do relógio.
Talvez eu vá a Nova York em março, ou a Madri em fevereiro. Mas eu queria mesmo era ir pra Friburgo, ver meus pais. Ou viajar com as meninas para o sul - cê me espera, Dita?
Então. É isso. Todo mundo da revista foi embora, e eu estou triste porque não vou mais poder baixar minhas séries pra assistir em casa comendo Pringles sabor vulcão ardido. Já está ficando escuro e eu vou começar o caminho pro meu morro - criticando as roupas do mulherio no metrô, ensinando pela enésima vez pra algum turista pra que lado fica a Praia de Ipanema e pensando em como eu sou uma mulher de sorte e, hoje, feliz.
quinta-feira, dezembro 29, 2011
O exato momento

Catatau ligou exatamente às 12h10m, a voz bem fininha. "Voz de coelhinho atrás da moita", como eu digo a ela, e ela ri fofa, quente, macia, feliz, riso do meu bebê. Catatau sempre foi a-menina-que-adora-brincar-que-é-mulher. Sempre muito feminina, sempre cheirosa, sempre arrumada, sempre cuidada. As brincadeiras jamais incluíram violência, armas, subir em árvores, girar feio doida até cair de pernas abertas no meio do pátio da escola (aka Zé Colméia). A roupa sempre impecável, os cabelos escovados/arrumados, o perfume e o gloss na bolsa, a medição do salto para comprovar que, sim, esse ano eu estou usando sapatos mais altos do que no ano passado.
Catatau ligou exatamente às 12h10n, a voz bem fininha. "Mamãe, fiquei menstruada! E não estou com cólica nem com nada!". Depois dos seios, minha Joaninha tão redonda e cheirando a manhã botou o outro pé na adolescência. E eu, trocando emails com o distribuidor das revistas em São Paulo, com o telefone fixo na outra mão e o caderno de anotações aberto no colo, parei os minutos para sentir uma alegria imensa e uma tristeza incomparável pelo tempo que não volta mais, por aquilo que, se não aproveitei, não mais terei como recuperar. Terminou. E acabou de começar.
segunda-feira, dezembro 26, 2011
Dividir e multiplicar

Esta é a última semana do ano. Eu estou sozinha aqui na redação da revista. Eu & minhas listas, eu & minhas resoluções, eu & EU. Pensando como foi o ano, o que eu quero fazer em 2012 - você sabe, antes de o mundo acabar no próximo Natal :)
Então. Zé Colméia passou por um triz, Catatau passou direito. Zé Colméia ainda insiste em andar pelada pela casa (dentro e fora,) Catatau escolheu um sapato de salto (saltinho, vai) vermelho de verniz chiquerésimo pra usar na ceia de Natal na casa do pai. Minhas meninas que já não estão assim tão meninas.
Eu passei o Natal sozinha. Minha ceia foi um panetone com suco de manga. Era pra ser vinho verde, mas eu esqueci. Deixei de lembrar um monte de coisas, mas não me saía da cabeça meu pai segurando o choro ao telefone dizendo que o aparelho deles estava mudo e que ali, no meio da estrada poerenta, ele me abençoava e me desejava o melhor dos natais, o melhor dos revéillons, o melhor.
Meu cachorro mais novo fez 10 anos no dia de Natal. Dez anos. A caçulinha. Meu querido golden já avança para os 14 anos, com saúde e todos os dentes na boca. Ainda late alucinada e dolorosamente quando me vê calçar os sapatos para sair, e se esfrega em mim qual um gigantesco gato laranja quando chego em casa.
Sem água, sem as meninas, sem ceia de Natal, sem árvore, sem presentes, mas cheia de gratidão por terminar o ano com saúde, com meus pais vivos, com filhas saudáveis, com comida na mesa e um teto sobre a cabeça, com meus companheiros fiéis dormindo satisfeitos na cozinha, com meus amigos.
Bom 2012 pra você. Que o fim do próximo ano chegue assim: sem nada a pedir, com tudo por agradecer.
terça-feira, novembro 29, 2011
Seminovos
E então eu resolvi levar todos os brinquedos todas as roupas todos os sapatos das meninas para a casa da minha mãe. Tudo o que eu separei durante o ano, o que não serve mais, tudo o que não é mais brincado, vestido ou paramentado.
Só pra ter uma noção da altura da pilha: são 36 pares (pares) de sapatos. Quase 20 caixas de quebra-cabeças. Perto de 50 bonecas. Cerca de 35 bolsas. E por aí vai.
Impressionante como aquilo que era vital há um ano hoje em dia suscita um "Mas você tem certeza de que isso era meu??!?"
Oi, aborrecência. Tô chegando aí.
Só pra ter uma noção da altura da pilha: são 36 pares (pares) de sapatos. Quase 20 caixas de quebra-cabeças. Perto de 50 bonecas. Cerca de 35 bolsas. E por aí vai.
Impressionante como aquilo que era vital há um ano hoje em dia suscita um "Mas você tem certeza de que isso era meu??!?"
Oi, aborrecência. Tô chegando aí.
...
Sinceramente, tem dias que dá vontade de abrir a porta e sair andando, sem parar.
Só isso. Sair andando sem olhar pra trás.
Só isso. Sair andando sem olhar pra trás.
segunda-feira, novembro 07, 2011
E...
Não fomos na neuropsicóloga.
Zé Colméia fraturou o braço. Saiu da emergência (três hospitais particulares; nenhum com ortopedista E raio x) de mimimi porque não tinha faixa pra tala de gesso colorida. Óbvio que a besta-mãe comprou bandagem de crepom, tinta Guarany e tingiu dois rolos de rosa pink.
Óbvio.
Zé Colméia fraturou o braço. Saiu da emergência (três hospitais particulares; nenhum com ortopedista E raio x) de mimimi porque não tinha faixa pra tala de gesso colorida. Óbvio que a besta-mãe comprou bandagem de crepom, tinta Guarany e tingiu dois rolos de rosa pink.
Óbvio.
quinta-feira, novembro 03, 2011
Vigília
Amanhã é a primeira consulta com a neuropsicóloga - o primeiro passo para se descobrir se Zé Colméia tem ou não dislexia.
Ontem eu contei à ela. No início ela chorou muito. "É uma doença, eu sou doente, você disse que eu tenho, todo mundo tem que aprender a conviver com isso." Então eu expliquei, falei, mostrei, dei pra ela ler. E ela foi se acalmando, entendendo que não é definitivo - quem sou eu pra fazer diagnóstico? - que é uma jornada de descobrimento e aprendizagem, minha e dela. E só então ela se acalmou. E foi pro canto pensar, como só ela sabe fazer.
Então, muito trabalho, sem novidades. Sem tempo para minhas amigas virtuais tão queridas. Mas eu descobri um coisinha legal, pra quem é apaixonada por corujas (eu sou): download digrátis de um calendário de corujas (você monta qual imagem quer em qual mês) aqui.
Ontem eu contei à ela. No início ela chorou muito. "É uma doença, eu sou doente, você disse que eu tenho, todo mundo tem que aprender a conviver com isso." Então eu expliquei, falei, mostrei, dei pra ela ler. E ela foi se acalmando, entendendo que não é definitivo - quem sou eu pra fazer diagnóstico? - que é uma jornada de descobrimento e aprendizagem, minha e dela. E só então ela se acalmou. E foi pro canto pensar, como só ela sabe fazer.
Então, muito trabalho, sem novidades. Sem tempo para minhas amigas virtuais tão queridas. Mas eu descobri um coisinha legal, pra quem é apaixonada por corujas (eu sou): download digrátis de um calendário de corujas (você monta qual imagem quer em qual mês) aqui.
terça-feira, outubro 25, 2011
Pra debaixo da terra
Eu sempre ouço que gente que frequenta (adoro isso: "frequenta") o metrô é povo mais educado (aka não-pobre). A editora fica em Ipanema, na Praça General Osório - berço da Feira Hippie, perto do Arpoador: enfim, internacional. Todo santo dia eu vou de metrô - a ver:
Quando a porta do vagão abre sai todo mundo correndo. Eu ainda não entendi nem o porquê nem pra quê. Pra pegar lugar na janelinha da escada rolante?
Moças finas que usam roupa de marca e tomam banho de perfume de grife - porque é melhor você morrer sufocada numa nuvem de Dior do que numa de desodorante Axé, é isso?
Moças & rapazes finos que fingem dormir pra não dar lugar pra velhinha. Ou, pior: dão lugar pra velhinha branca e maquiada, mas esquecem a preta enrugada e cheia de bolsas que está voltando do batente e vai em pé até a Pavuna.
Quem se encosta no poste e impede quem quer que seja de segurar ali.
Quem traz farnel pra comer no meio do vagão lotado e enche as cercanias de farelos & poças de suco.
Hours concours: o bobalhão que dá aquela corridinha (ou, o mais inexplicável, fica no bolo do mulherio na pontinha da plataforma) e entra no vagão das mulheres. Sempre tem um - SEMPRE - em cada estação. E lá vai o guardinha retirar a criatura que fingiu que não viu que só tem mulher lá dentro - lá dentro do vagão pintado de cor-de-rosa, parado na plataforma indicada por uma gigantesca faixa cor-de-rosa escrito VAGÃO DAS MULHERES em dois idiomas. E são quatro as respostas:
"Eu não vi"
"Eu não sabia"
"Foi sem querer"
"Desculpe"
Seu filho fala isso, não fala?
Quando a porta do vagão abre sai todo mundo correndo. Eu ainda não entendi nem o porquê nem pra quê. Pra pegar lugar na janelinha da escada rolante?
Moças finas que usam roupa de marca e tomam banho de perfume de grife - porque é melhor você morrer sufocada numa nuvem de Dior do que numa de desodorante Axé, é isso?
Moças & rapazes finos que fingem dormir pra não dar lugar pra velhinha. Ou, pior: dão lugar pra velhinha branca e maquiada, mas esquecem a preta enrugada e cheia de bolsas que está voltando do batente e vai em pé até a Pavuna.
Quem se encosta no poste e impede quem quer que seja de segurar ali.
Quem traz farnel pra comer no meio do vagão lotado e enche as cercanias de farelos & poças de suco.
Hours concours: o bobalhão que dá aquela corridinha (ou, o mais inexplicável, fica no bolo do mulherio na pontinha da plataforma) e entra no vagão das mulheres. Sempre tem um - SEMPRE - em cada estação. E lá vai o guardinha retirar a criatura que fingiu que não viu que só tem mulher lá dentro - lá dentro do vagão pintado de cor-de-rosa, parado na plataforma indicada por uma gigantesca faixa cor-de-rosa escrito VAGÃO DAS MULHERES em dois idiomas. E são quatro as respostas:
"Eu não vi"
"Eu não sabia"
"Foi sem querer"
"Desculpe"
Seu filho fala isso, não fala?
quarta-feira, outubro 19, 2011
Bateu à porta
Então. Emprego novo. Editora executiva de uma revista de arte. The boss.
A redação é minúscula, mas a dona da revista falou não quero nem saber como você vai administrar isso: confio no seu taco porque a gente tem que fazer dinheiro, entendeu? Entendi. A revista é o máximo, um luxo (de verdade) e verte prejuízo por todos os cantos - da lombada ao índice. Porque quem estava aqui antes de mim era uma moça adorável que pendurou um monte de gente na folha de pagamento, riscando com nanquim (aqui é tudo chique, já disse) e bico de pena a palavra "custo" do dicionário encapado de pelica vermelha.
Mas é o máximo. Trabalhar em equipe. Fazer as coisas do meu jeito. Falar com pessoas que me olham na altura dos olhos. Discutir design, fotografia, tendências da arte contemporânea brasileira. Óbvio que eu já criei uma bela seção de livros com três colunas.
É claro que algumas coisas entraram na roda - esse meu Breviário é exemplo. Abandonado, carente. Eu tinha planos para ele - e também para o Leitura Seminova. Pra este eu vou migrar os textos do meme de livros, e quem sabe botar mais alguns lá - pelo menos, um por semana.
Felicidade.
A redação é minúscula, mas a dona da revista falou não quero nem saber como você vai administrar isso: confio no seu taco porque a gente tem que fazer dinheiro, entendeu? Entendi. A revista é o máximo, um luxo (de verdade) e verte prejuízo por todos os cantos - da lombada ao índice. Porque quem estava aqui antes de mim era uma moça adorável que pendurou um monte de gente na folha de pagamento, riscando com nanquim (aqui é tudo chique, já disse) e bico de pena a palavra "custo" do dicionário encapado de pelica vermelha.
Mas é o máximo. Trabalhar em equipe. Fazer as coisas do meu jeito. Falar com pessoas que me olham na altura dos olhos. Discutir design, fotografia, tendências da arte contemporânea brasileira. Óbvio que eu já criei uma bela seção de livros com três colunas.
É claro que algumas coisas entraram na roda - esse meu Breviário é exemplo. Abandonado, carente. Eu tinha planos para ele - e também para o Leitura Seminova. Pra este eu vou migrar os textos do meme de livros, e quem sabe botar mais alguns lá - pelo menos, um por semana.
Felicidade.
segunda-feira, setembro 26, 2011
quinta-feira, setembro 15, 2011
A vida como ela é
Comprar um sapato novo porque seu único mocassim antichuva morreu na contramão
OU
Pagar a conta de telefone.
OU
Pagar a conta de telefone.
quinta-feira, setembro 08, 2011
quarta-feira, setembro 07, 2011
Day 29: A book someone read to you

- Clarita!
Silêncio.
- Clari...ta!
Novamente silêncio.
- Clari...ta! Mas onde estará esta menina? Com certeza aprontando reinação - resmunga a mucama, alta e magra rapariga, mulata clara, toda falante e gesticuladora, antiga empregada na casa, ótima criatura.
- Clarita! Onde é que vancê está, menina? Seu Totó chegou! Venha, menina! Arresponda, menina! O povaréu está tudo na sala! Seu Totó trouxe um mundão de presentes!
A estas palavras, uma voz abafada se faz ouvir:
- Estou aqui, Maria alta, estou no forno... já vou saindo - e, encolhendo-se como um gato, sai de dentro do forno, viva como um macaco, esperta como um sagui, uma menina dos seus 5 anos. E vai saindo e vai falando:
- Vovô trouxe presente?! Vovô trouxe a boneca preta? O que ele trouxe pra mim, Maria alta? Conte o que foi, Maria alta!
- Oh! Menina dos meus pecados, onde é que vancê foi se meter? E todo mundo a lhe percurá... Pois seu Totó chegou e todo mundo estava na sala: os meninos, as meninas, a criançada, D. Sinhara e seu Doutor e D. Sílvia e a Babá e a criadagem, quando D. Sinhara disse: - Quedê Clarita? Ela não está aqui! - E toca nóis tudo a percurá vancê... e a chamar e a gritar, até que eu se alembrei de vir destas bandas, pois que vancê gosta de arreliar com Adolfo...
- Pois foi pra me esconder dele, Maria alta, que eu entrei no forno...
- Mas que é que vancê já fez pra ele, menina?
- Não foi nada, Maria alta, é que eu estava com uma fo...me, sabe? então eu fui... e vi a galinha dele deitada em cima de uns ovos... sabe? e eu fui, então, e comi dois... só dois, Maria alta! e eu ia pegando outro, quando ele correu com um pau na mão, bravo que só vendo, e eu então fui fugindo correndo, ele atrás de mim, então, quando eu virei atrás da casa, eu entrei depressa dentro do forno, e ele nem viu e passou zangado, falando, falando, e eu bem quietinha dentro do forno... Ele nem desconfiou, Maria alta, e eu dava risada lá dentro, bem escondidinha... Que lugar bom que eu achei! Mas você não conte pra ninguém, ouviu, Maria alta? [...]
Falando e papagueando sempre com a mucama Maria alta, chega Clarita à sala de jantar, onde está reunida toda a família em redor do vovô, recém-chegado de São Paulo.
- Vovô, vovô! Meu presente! minha boneca preta! O senhor trouxe, vovô? Quedê ela, vovô?
- Trouxe sim, menina, espere aí... Não agarre assim os pacotes, que pode quebrar! Isto aqui é louça, Clarita, são xícaras para vossa avó... Sinhara, onde é que está a boneca de Clarita?
E enquanto vovó procura, dentre os vários pacotes, a boneca de Clarita, esta vai examinando os brinquedos que as outras crianças ganharam: o Tonico, seu irmãozinho de 3 anos, um cavalinho de pau; a Nenete, sua irmãzinha de 4 anos, uma caixinha de música; Docarmo, sua tia, mais moça que Clarita 6 meses, um fogãozinho com panelas; Marina, outra titia, que já anda na casa dos 7, um aparelhinho de louça; até para a Lourdes, sua tia também, que já entrara nos 11 anos, o vovô trouxe um brinquedo, uma linda mobiliazinha de boneca. E para os titios, rapazinhos de 13, 16, 19 anos, belas gravatas e lenços. Tia Zilota, que já é moça, e D. Silvia, a mamãe de Clarita, também têm seus presentes: leques, luvas e "jabots". [...]
Clarita desde novinha sempre foi inventadeira, como diz a tia Zilota. Para dormir, era só na rede, com duas pobres vítimas a seu lado, empurrando a rede, balançando, balançando, balançando... e cantando, cantando, cantando... Quando pensavam que ela já estava ferradinha no sono, com um suspiro de alívio, com todo o cuidado, tiravam a rede dos ganchos e, sempre balançando e cantando, e cantando e balançando, na pontinha dos pés, sem o menor ruído, levavam-na para o quarto... Mas, assim que, sempre, balançando e cantando, e cantando e balançando, a punham na cama... Uá! uá! uá! - Clarita berrava e urrava, e era preciso voltar de novo, e de novo recomeçar o balanço e o canto, que se prolongavam, geralmente, até as onze horas, meia-noite... Faltava um bom chá de pouco caso, e deixá-la chorar sozinha na cama, para se corrigir, mas, quem diz?! A mamãe bem que tentou de o fazer, mas a vovó pulou logo:
- Minha neta?! Deixá-la chorar?! Nunca! Que falta de coração! Então não temos nós para cuidar dela?
E ainda se fosse noite ficasse só neste prólogo tormentoso, vá lá! Mas não, a noite toda era um pererequê para os pais de Clarita, ou, quando estes não aguentavam mais, para quem quisesse fazer penitência, dormindo com ela. [...]
Clarita da Pá Virada
Violeta Maria (pseudônimo de Maria Clarice Marinho Villac)
Livraria Cristo-Rei Editora, 1939
Minha mãe cresceu lendo as aventuras de Clarita, que começam no interior de São Paulo na primeira década do século XX. A autora escreveu ainda "Clarita no colégio", que minha mãe também leu quando criança. Os dois livros, e mais os três livros da Condessa de Ségur ("Os desastres de Sofia", "As meninas exemplares" e "Férias") eram os livros que minha mãe lia para mim e para minha irmã. É uma das minhas lembranças mais queridas - e o que vai terminar em batalha judicial para ver quem fica com os livros originais de herança :o)
terça-feira, setembro 06, 2011
Day 28: A book you can quote by heart

Estava lurdo e os macos tavos
Lapavam e tucavam no vabo:
Todos savos estavam os borogravos
E os momos erevos extravabo.
...
Chegou a hora, disse a Morsa,
de falar de outras coisas.
De lacres, sapatos e navios,
De repolhos e reis...
De por que o mar está fervendo ou
Se os porcos têm asas.
Pigi, pogi, nada de trabalho hoje!
Alice no País das Maravilhas
Lewis Caroll
segunda-feira, setembro 05, 2011
Day 27: Favorite love story

Primórdios
Irmã Maria (Colombo, 1949: Vallipuram)
Ela chega no início da estação seca, com o bebê no colo, usando a cor branca das viúvas. O fino sári de gaze que envolve seu corpo alto, esbelto, é claramente de boa qualidade, mas está rasgado e sujo de poeira, escuro como sua pele macia. Ela é magra demais - todas as freiras concordam quanto a isso. Quando duas freiras a encontram vagando muda na estrada próxima ao convento da Sagrada Família, os ossos salientam-se sob a pele do seu rosto, suas costas, suas costelas. A mulher seria linda se não fosse tão magra e tão escura. O bebê é claro e quase tão magro quanto a mãe.
Quando o encontram, a irmã menor, Irmã Anne, estende a mão para segurar o braço da mulher, que parece tonta, prestes a desmaiar. Mas a mulher grita e se agacha na estrada de terra, enroscando o corpo em volta da criança; a freira recua. [...]
Irmã Anne fala baixinho, delicadamente, com a mulher. Apesar do bebê que carrega nos braços, ela parece pouco mais que uma menina - deve ter uns dezoito anos, e seu rosto desprotegido está manchado de lágrimas. Sem tocar na mulher, ela a convence a se levantar de novo, a caminhar pela estrada. O sol está alto no céu quando elas a encontram; mas já está quase se escontendo atrás do topo da palmeira mais próxima quando elas conseguem fazê-la entrar no convento. [...]
A mulher não consegue fazer amizade logo, porque é muda. Ela tem uma lingua, mas não parece saber como usá-la. [...] Os boatos se espalham rapidamente entre as freiras.
Irmã Anne é a mais generosa delas; ela afirma que a pobre mulher deve ter ficado viúva e sem família em consequência de algum terrível acidente.[...] Outras histórias são contadas, é claro, mas nenhuma é tão apreciada. [...] Uma das freiras dá à mulher o nome de Maria. Elas a chamam assim, cada uma decidindo em sua mente se está falando com alguém mais parecida com a Virgem Santíssima ou com Madalena, a prostituta.
Numa aldeia ao norte, uma mulher está lavando louça, de frente para a pia.
- Você não devia tê-los deixado sozinhos! - Um homem está parado atrás dela, alto, de ombros retos. Ele tem a pele clara, é bonito como um ator. Ela não se vira para ele; tudo o que ele pode ver são suas costas. São costas atraentes - a pele de sua cintura acima do decote do sári de algodão é clara, sem manchas.
- Foi só por alguns minutos, enquanto eu lavavao rosto. Eu estava cansada, Sundar - [...] Ele segura o ombro dela com a mão direita; e a faz virar.
- Cansada? Por quê? - A voz dele é ríspida. - Você não faz nada, Sushila. Ela deu banho nele, alimentou-o, brincou com ele. Você a mandou fazer tudo isso.
Ela segurou um copo meio lavado. - Eu sei como lidar com ela. Sempre soube.
- Ela é uma débil mental. Nós nunca deveríamos...
Sushila olha para ele, com as sobrancelhas erguidas. - Marido morto, bebê morto. Uma mulher sozinha... par aonde poderia ter ido? Que vida a minha irmã teve? - Ela torna a olhar para baixo. - E eu precisava dela.
Ele vira de costas e dá alguns passos, depois torna a se virar para ela. - Como você pôde deixá-los sozinhos? - A voz dele é baixa, angustiada.
- Eu só... tinha que lavar o rosto. Foram só alguns minutos. - Ela contempla as mãos, que seguram o copo molhado. Elas estão cobertas de anéis de ouro. - Sundar, o que vai acontecer agora?
- A polícia vai cintinuar procurando. Nós vamos continuar procurando. Nós vamos achá-la. - Ele se senta, o mais longe possível de Suchila. Até onde ela poderá ter ido? - ele pergunta baixinho.
Ela não responde nada, apenas torna a se virar para a pia.Mas não recomeça a lavar. O copo continua apertado em sua mão, delicado, frágil.
Elas estavam sentadas no jardim quando isso aconteceu, Sushila num sári rosa como as buganvílias que subiam em arco. Sua irmã, usando o branco das viúvas, segurava o
bebê, cantarolando baixinho para ele, sem palavras. Sua irmã não falava desde que a doença levara embora o seu marido e o seu bebê. Mas ela tinha sido uma boa ama-de-leite para o bebê, tinha cuidado dele, protegendo-o do sol. Antes da chegada dele, Sushila nunca tivera este cuidado.
Sushila os observa, com o coração batendo mais depressa. Ela teve uma ideia. As palavras estão esvoaçando em sua cabeça, loucas para sair. Ela as tem reprimido há dias, semanas. Mas está prestes a perder a batalha. Dentro de poucos minutos, vai começar a falar, baixinho, suavemente, quase como se estivesse falando consigo mesma. Ela vai dizer que existem lugares para onde uma mulher pode ir. [...] Há lugares que recebem uma mulher, cuidam dela.
Ela irá mencionar um desses lugares, o convento da Sagrada Família. [...] Sushila irá dizer que uma criança iria sentir-se feliz num lugar como aquele, abrigado, seguro. Ela vai dizer, ainda mais suavemente, que uma criança deveria ter uma mãe que a amasse. Em seguida, ela vai se levantar, entrar em casa, deixando-os sozinhos no jardim. Ela os deixará sozinhos por um longo tempo. Sua irmã é muda, mas não é burra.
Sushila está terminando o banho. Ela pega a canca de lata , joga água sobre a cabeça, sobr seus longos cabelos negros e corpo sensual. Este amoleceu no último ano, tornando-se desconfortavelmente pesado. Sua barriga agora está saliente, suas coxas roçam uma na outra quando ela anda. Seus seios estão finalmente diminuindo, mais ainda pendem no peito. Sushila não suporta tocar nesse corpo desconhecido.
Suas mãos se movem suave e mecanicamente - mergulhando a caneca, despejando a água. Ela está fria; ela estremece. Ela termina e sai do cômodo. Ela se seca, de olhos fechados. Envolve o corpo com um sári azul de seda e caminha de leve pelo corredor e entra no quarto. [...]
Sushila se senta no chão de terra, [...] e observa o marido adormecido. O rosto dele é liso, sem rugas. Ele ainda é tão bonito quanto no dia em que se casaram. [...] Ele não é um marido ruim para ela. Talvez ela mesma devesse ter tomado o caminho do convento, feito voto de silêncio e desaparecido dentro de um hábito negro, um capelo escondendo seu cabelo sedoso e abundante. Esta solução não havia lhe ocorrido na hora. Não era exatamente uma solução.[...]
A madre recebe o jovem casal amavelmente; quando a porta se fecha atrás deles, os cochichos começam entre as freiras. Como eles são bonitops! Como a pele deles é clara! O bebê tem os olhos dele? Ele é um marido? Um irmão?
Maria dorme profundamente a manhã inteira, durante as horas que o casal passa fechado com a Madre Superiora. Quando os três finalmente saem da sala, caminho juntos pelo longo corredor branco até o quarto dela.Da porta, eles vêem Maria e o bebê, dormindo. Sushila avança e toda delicadamente o ombro de Maria. Ela acorda imediatamente e, ao ver a irmã, começa a gemer. O gemido vai crescendo até se tranformar num choro medroso, entrecortado. [...]
Sundar entra, olha para a esposa. Olha para Maria. Então se inclinae tira o bebê dos braços dela. Ele se vira, abraçado à criança, com lágrimas nos olhos. Então sai. Sushila afasta algumas mechas de cabelo da testa de Maria, depois também dá meia-volta e sai atrás do marido, deixando a irmã para trás, aos cuidados das freiras. Ela não chora, mas nas semanas seguintes nunca se afasta mais do que alguns passos do marido e do filho.
Os lamentos aos poucos se tornam gemidos quase inaudíveis. Um dia, Maria volta a trabalhar no jardim. Ela não sorri e nunca fala. As freiras continuam a especular, a conjeturar, mas embora discutam o caso pelo resto da vida, inventem mil histórias diferentes, nunca saberão a verdade. Nunca chegarão nem perto dela.
Corpos em movimento
Mary Anne Mohanraj - Tradução de Léa Viveiros de Castro
Editora Rocco, 2006
Corpos em movimento é uma coletânea de histórias interligadas que traçam o pano de fundo emocional, sexual e geográfico de duas gerações de famílias do Sri Lanka na última metade do século XX. Nestas histórias, o fluxo das imigrações modela a vida, o amor e as relações, num país embebido em séculos de tradição, mas obrigado a encarar a modernização dos costumes sociais.
Numa terra de casamentos arranjados e papéis marcados, especialmente para as mulheres, as narrativas exploram o conflito entre gerações e gêneros no momento em que as pessoas fazem suas próprias escolhas acerca do futuro [...].
[...] Mary Anne Mohanraj usa as palavras com maestria para moldar momentos íntimos, fragmentos amorosos, paixões secretas, as ambições e os desafios espirituais dos mesmos de cada família em busca de um sentido para suas vidas [...]. (Orelhas)
domingo, setembro 04, 2011
Day 26: A book that makes you fall asleep

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
- Continue, disse eu acordando.
- Já acabei, murmurou ele.
- São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você"; "Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo."; "Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça."
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração - se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo.
Dom Casmurro
Machado de Assis
Editora Ática, 1976
Fazer uma menina de 11 anos ler "Dom Casmurro" pra escola dá nisso. Cochilei umas quatro vezes na primeira página antes de decidir que eu detestava esse livro. Aos 25, resolvi ler de novo e... Voilà! Amei. É um dos meus top ten foréva (copyright Tia Batata).
sábado, setembro 03, 2011
Day 25: A book you used to hate but now love
A Bíblia. Porque eu li antes este livro:
Geração
Ele fala sozinho. Nenhum ser humano foi ainda criado para ouvi-lo e os outros seres divinos a quem raramente irá se dirigir, quase sempre de passagem, mal parecem estar dentro de seu círcuo de atenção - espectadores na melhor das hipóteses, não colaboradores.
No princípio, Deus criou os céus e a terra. [...] [Gênesis, 1:1-25]
Ele fala para si mesmo, mas não sobre si. Ele nada diz sobre quem é ou o que pretende, e suas palavras são abruptas, sem nenhuma intenção de comunicar nada a ninguém, muito menos explicar nada, mas simplesmente decretar.
A cena não tem narrador. Não é apresentada como uma visão referendada por algum profeta que teve o privilégio de assistir ao trabalho de Deus. Mesmo assim, o efeito é o de algo ouvido atrás da porta, que se espiou escondido. Entramos em cena com a obra em andamento, e o que surpreende é que o trabalhador , apesar de estar falando consigo mesmo, não demonstra a menor hesitação. Não está cismando. Tem algo muito preciso em mente, e cada estágio de seu projeto conduz, sem pressa mas com extrema economia e de forma extremamente direta, ao estágio seguinte. Primeiro, luz. Depois, a cúpula do céu, abrindo uma gigantesca bolha no caos de água: pagua acima, água abaixo. Depois, a separação das águas inferiores para que possa surgir a terra seca. Depois a vegetação da terra recém-exposta. Depois, no quarto dia, o sol, a lua, as estrelas, para fornecer maisluz e permitir o cálculo do tempo; no quinto dia, as criaturas vivas do mar e do ar; e no sexto dia, os seres da terra.[...]
Destruidor
"Porque me arrependo de o haver feito"
Gênesis, 4-11
[...] O relato "eloísta" (de "Deus") do primeiro ato da geração humana (5:1-3) difere em diversos pontos do relato "javeísta" (do "Senhor") que precede a história de Caim e Abel. Leitores atentos poderão notar que [...] o relato de "Deus" faz da reprodução a imagem da criatividade divina e, coerentemente, omite qualquer menção ao papel da mulher: "No dia em que Deus criou o homem, À semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Viveu Adão 130 anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem" (5:1-3). O relato "do Senhor", ao contrário, começa com a relação sexual - "Coabitou o homem com Eva, sua mulher." (4:1) - e omite qualquer menção à semelhança entre o divino e o humano.[...]
O que torna Deus divino?
Deus [...] é no sentido mais básico da palavra o protagonista, o proto agonistes ou "primeiro ator" da Bíblia. Ele não entra na cena humana. Ele cria a cena humana, na qual entra depois. Cria o antagonismo humano que ao interagir com ele dá forma a toda a ação subsequente. Esse é o seu traço distintivo primeiro e mais óbvio.
Se a precedência de Deus faz seu antagonista humano especialmente dependente dele, todavia é verdade também que Deus é especialmente dependente de seu antagonista humano, e essa dependência torna mais complicada a tarefa a que nos propomos - explicitamente, ler a Bíblia como a história de Deus. [...] Deus não toma nenhuma atitude que não tenha o homem como seu objetivo. Não se trata nunca das "aventuras de Deus".
Deus, uma biografia
Jack Miles - Tradução de José Rubens Siqueira
Companhia das Letras, 1997
Deus como protagonista da Bíblia. Você nunca mais vai ler as Escrituras do mesmo jeito - ou melhor, você vai passar a ler a Bíblia para ver como este é o personagem mais rico da história da literatura. E o mais incompreendido também.

Geração
Ele fala sozinho. Nenhum ser humano foi ainda criado para ouvi-lo e os outros seres divinos a quem raramente irá se dirigir, quase sempre de passagem, mal parecem estar dentro de seu círcuo de atenção - espectadores na melhor das hipóteses, não colaboradores.
No princípio, Deus criou os céus e a terra. [...] [Gênesis, 1:1-25]
Ele fala para si mesmo, mas não sobre si. Ele nada diz sobre quem é ou o que pretende, e suas palavras são abruptas, sem nenhuma intenção de comunicar nada a ninguém, muito menos explicar nada, mas simplesmente decretar.
A cena não tem narrador. Não é apresentada como uma visão referendada por algum profeta que teve o privilégio de assistir ao trabalho de Deus. Mesmo assim, o efeito é o de algo ouvido atrás da porta, que se espiou escondido. Entramos em cena com a obra em andamento, e o que surpreende é que o trabalhador , apesar de estar falando consigo mesmo, não demonstra a menor hesitação. Não está cismando. Tem algo muito preciso em mente, e cada estágio de seu projeto conduz, sem pressa mas com extrema economia e de forma extremamente direta, ao estágio seguinte. Primeiro, luz. Depois, a cúpula do céu, abrindo uma gigantesca bolha no caos de água: pagua acima, água abaixo. Depois, a separação das águas inferiores para que possa surgir a terra seca. Depois a vegetação da terra recém-exposta. Depois, no quarto dia, o sol, a lua, as estrelas, para fornecer maisluz e permitir o cálculo do tempo; no quinto dia, as criaturas vivas do mar e do ar; e no sexto dia, os seres da terra.[...]
Destruidor
"Porque me arrependo de o haver feito"
Gênesis, 4-11
[...] O relato "eloísta" (de "Deus") do primeiro ato da geração humana (5:1-3) difere em diversos pontos do relato "javeísta" (do "Senhor") que precede a história de Caim e Abel. Leitores atentos poderão notar que [...] o relato de "Deus" faz da reprodução a imagem da criatividade divina e, coerentemente, omite qualquer menção ao papel da mulher: "No dia em que Deus criou o homem, À semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Viveu Adão 130 anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem" (5:1-3). O relato "do Senhor", ao contrário, começa com a relação sexual - "Coabitou o homem com Eva, sua mulher." (4:1) - e omite qualquer menção à semelhança entre o divino e o humano.[...]
O que torna Deus divino?
Deus [...] é no sentido mais básico da palavra o protagonista, o proto agonistes ou "primeiro ator" da Bíblia. Ele não entra na cena humana. Ele cria a cena humana, na qual entra depois. Cria o antagonismo humano que ao interagir com ele dá forma a toda a ação subsequente. Esse é o seu traço distintivo primeiro e mais óbvio.
Se a precedência de Deus faz seu antagonista humano especialmente dependente dele, todavia é verdade também que Deus é especialmente dependente de seu antagonista humano, e essa dependência torna mais complicada a tarefa a que nos propomos - explicitamente, ler a Bíblia como a história de Deus. [...] Deus não toma nenhuma atitude que não tenha o homem como seu objetivo. Não se trata nunca das "aventuras de Deus".
Deus, uma biografia
Jack Miles - Tradução de José Rubens Siqueira
Companhia das Letras, 1997
Deus como protagonista da Bíblia. Você nunca mais vai ler as Escrituras do mesmo jeito - ou melhor, você vai passar a ler a Bíblia para ver como este é o personagem mais rico da história da literatura. E o mais incompreendido também.
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