segunda-feira, setembro 26, 2011

quinta-feira, setembro 15, 2011

A vida como ela é

Comprar um sapato novo porque seu único mocassim antichuva morreu na contramão

OU

Pagar a conta de telefone.

quinta-feira, setembro 08, 2011

quarta-feira, setembro 07, 2011

Day 29: A book someone read to you



- Clarita!
Silêncio.
- Clari...ta!
Novamente silêncio.
- Clari...ta! Mas onde estará esta menina? Com certeza aprontando reinação - resmunga a mucama, alta e magra rapariga, mulata clara, toda falante e gesticuladora, antiga empregada na casa, ótima criatura.
- Clarita! Onde é que vancê está, menina? Seu Totó chegou! Venha, menina! Arresponda, menina! O povaréu está tudo na sala! Seu Totó trouxe um mundão de presentes!
A estas palavras, uma voz abafada se faz ouvir:
- Estou aqui, Maria alta, estou no forno... já vou saindo - e, encolhendo-se como um gato, sai de dentro do forno, viva como um macaco, esperta como um sagui, uma menina dos seus 5 anos. E vai saindo e vai falando:
- Vovô trouxe presente?! Vovô trouxe a boneca preta? O que ele trouxe pra mim, Maria alta? Conte o que foi, Maria alta!
- Oh! Menina dos meus pecados, onde é que vancê foi se meter? E todo mundo a lhe percurá... Pois seu Totó chegou e todo mundo estava na sala: os meninos, as meninas, a criançada, D. Sinhara e seu Doutor e D. Sílvia e a Babá e a criadagem, quando D. Sinhara disse: - Quedê Clarita? Ela não está aqui! - E toca nóis tudo a percurá vancê... e a chamar e a gritar, até que eu se alembrei de vir destas bandas, pois que vancê gosta de arreliar com Adolfo...
- Pois foi pra me esconder dele, Maria alta, que eu entrei no forno...
- Mas que é que vancê já fez pra ele, menina?
- Não foi nada, Maria alta, é que eu estava com uma fo...me, sabe? então eu fui... e vi a galinha dele deitada em cima de uns ovos... sabe? e eu fui, então, e comi dois... só dois, Maria alta! e eu ia pegando outro, quando ele correu com um pau na mão, bravo que só vendo, e eu então fui fugindo correndo, ele atrás de mim, então, quando eu virei atrás da casa, eu entrei depressa dentro do forno, e ele nem viu e passou zangado, falando, falando, e eu bem quietinha dentro do forno... Ele nem desconfiou, Maria alta, e eu dava risada lá dentro, bem escondidinha... Que lugar bom que eu achei! Mas você não conte pra ninguém, ouviu, Maria alta? [...]

Falando e papagueando sempre com a mucama Maria alta, chega Clarita à sala de jantar, onde está reunida toda a família em redor do vovô, recém-chegado de São Paulo.
- Vovô, vovô! Meu presente! minha boneca preta! O senhor trouxe, vovô? Quedê ela, vovô?
- Trouxe sim, menina, espere aí... Não agarre assim os pacotes, que pode quebrar! Isto aqui é louça, Clarita, são xícaras para vossa avó... Sinhara, onde é que está a boneca de Clarita?
E enquanto vovó procura, dentre os vários pacotes, a boneca de Clarita, esta vai examinando os brinquedos que as outras crianças ganharam: o Tonico, seu irmãozinho de 3 anos, um cavalinho de pau; a Nenete, sua irmãzinha de 4 anos, uma caixinha de música; Docarmo, sua tia, mais moça que Clarita 6 meses, um fogãozinho com panelas; Marina, outra titia, que já anda na casa dos 7, um aparelhinho de louça; até para a Lourdes, sua tia também, que já entrara nos 11 anos, o vovô trouxe um brinquedo, uma linda mobiliazinha de boneca. E para os titios, rapazinhos de 13, 16, 19 anos, belas gravatas e lenços. Tia Zilota, que já é moça, e D. Silvia, a mamãe de Clarita, também têm seus presentes: leques, luvas e "jabots". [...]

Clarita desde novinha sempre foi inventadeira, como diz a tia Zilota. Para dormir, era só na rede, com duas pobres vítimas a seu lado, empurrando a rede, balançando, balançando, balançando... e cantando, cantando, cantando... Quando pensavam que ela já estava ferradinha no sono, com um suspiro de alívio, com todo o cuidado, tiravam a rede dos ganchos e, sempre balançando e cantando, e cantando e balançando, na pontinha dos pés, sem o menor ruído, levavam-na para o quarto... Mas, assim que, sempre, balançando e cantando, e cantando e balançando, a punham na cama... Uá! uá! uá! - Clarita berrava e urrava, e era preciso voltar de novo, e de novo recomeçar o balanço e o canto, que se prolongavam, geralmente, até as onze horas, meia-noite... Faltava um bom chá de pouco caso, e deixá-la chorar sozinha na cama, para se corrigir, mas, quem diz?! A mamãe bem que tentou de o fazer, mas a vovó pulou logo:
- Minha neta?! Deixá-la chorar?! Nunca! Que falta de coração! Então não temos nós para cuidar dela?

E ainda se fosse noite ficasse só neste prólogo tormentoso, vá lá! Mas não, a noite toda era um pererequê para os pais de Clarita, ou, quando estes não aguentavam mais, para quem quisesse fazer penitência, dormindo com ela. [...]

Clarita da Pá Virada
Violeta Maria (pseudônimo de Maria Clarice Marinho Villac)
Livraria Cristo-Rei Editora, 1939


Minha mãe cresceu lendo as aventuras de Clarita, que começam no interior de São Paulo na primeira década do século XX. A autora escreveu ainda "Clarita no colégio", que minha mãe também leu quando criança. Os dois livros, e mais os três livros da Condessa de Ségur ("Os desastres de Sofia", "As meninas exemplares" e "Férias") eram os livros que minha mãe lia para mim e para minha irmã. É uma das minhas lembranças mais queridas - e o que vai terminar em batalha judicial para ver quem fica com os livros originais de herança :o)

terça-feira, setembro 06, 2011

Day 28: A book you can quote by heart



Estava lurdo e os macos tavos
Lapavam e tucavam no vabo:
Todos savos estavam os borogravos
E os momos erevos extravabo.

...

Chegou a hora, disse a Morsa,
de falar de outras coisas.
De lacres, sapatos e navios,
De repolhos e reis...
De por que o mar está fervendo ou
Se os porcos têm asas.
Pigi, pogi, nada de trabalho hoje!

Alice no País das Maravilhas
Lewis Caroll

segunda-feira, setembro 05, 2011

Day 27: Favorite love story



Primórdios
Irmã Maria (Colombo, 1949: Vallipuram)


Ela chega no início da estação seca, com o bebê no colo, usando a cor branca das viúvas. O fino sári de gaze que envolve seu corpo alto, esbelto, é claramente de boa qualidade, mas está rasgado e sujo de poeira, escuro como sua pele macia. Ela é magra demais - todas as freiras concordam quanto a isso. Quando duas freiras a encontram vagando muda na estrada próxima ao convento da Sagrada Família, os ossos salientam-se sob a pele do seu rosto, suas costas, suas costelas. A mulher seria linda se não fosse tão magra e tão escura. O bebê é claro e quase tão magro quanto a mãe.
Quando o encontram, a irmã menor, Irmã Anne, estende a mão para segurar o braço da mulher, que parece tonta, prestes a desmaiar. Mas a mulher grita e se agacha na estrada de terra, enroscando o corpo em volta da criança; a freira recua. [...]
Irmã Anne fala baixinho, delicadamente, com a mulher. Apesar do bebê que carrega nos braços, ela parece pouco mais que uma menina - deve ter uns dezoito anos, e seu rosto desprotegido está manchado de lágrimas. Sem tocar na mulher, ela a convence a se levantar de novo, a caminhar pela estrada. O sol está alto no céu quando elas a encontram; mas já está quase se escontendo atrás do topo da palmeira mais próxima quando elas conseguem fazê-la entrar no convento. [...]
A mulher não consegue fazer amizade logo, porque é muda. Ela tem uma lingua, mas não parece saber como usá-la. [...] Os boatos se espalham rapidamente entre as freiras.
Irmã Anne é a mais generosa delas; ela afirma que a pobre mulher deve ter ficado viúva e sem família em consequência de algum terrível acidente.[...] Outras histórias são contadas, é claro, mas nenhuma é tão apreciada. [...] Uma das freiras dá à mulher o nome de Maria. Elas a chamam assim, cada uma decidindo em sua mente se está falando com alguém mais parecida com a Virgem Santíssima ou com Madalena, a prostituta.

Numa aldeia ao norte, uma mulher está lavando louça, de frente para a pia.
- Você não devia tê-los deixado sozinhos! - Um homem está parado atrás dela, alto, de ombros retos. Ele tem a pele clara, é bonito como um ator. Ela não se vira para ele; tudo o que ele pode ver são suas costas. São costas atraentes - a pele de sua cintura acima do decote do sári de algodão é clara, sem manchas.
- Foi só por alguns minutos, enquanto eu lavavao rosto. Eu estava cansada, Sundar - [...] Ele segura o ombro dela com a mão direita; e a faz virar.
- Cansada? Por quê? - A voz dele é ríspida. - Você não faz nada, Sushila. Ela deu banho nele, alimentou-o, brincou com ele. Você a mandou fazer tudo isso.
Ela segurou um copo meio lavado. - Eu sei como lidar com ela. Sempre soube.
- Ela é uma débil mental. Nós nunca deveríamos...
Sushila olha para ele, com as sobrancelhas erguidas. - Marido morto, bebê morto. Uma mulher sozinha... par aonde poderia ter ido? Que vida a minha irmã teve? - Ela torna a olhar para baixo. - E eu precisava dela.
Ele vira de costas e dá alguns passos, depois torna a se virar para ela. - Como você pôde deixá-los sozinhos? - A voz dele é baixa, angustiada.
- Eu só... tinha que lavar o rosto. Foram só alguns minutos. - Ela contempla as mãos, que seguram o copo molhado. Elas estão cobertas de anéis de ouro. - Sundar, o que vai acontecer agora?
- A polícia vai cintinuar procurando. Nós vamos continuar procurando. Nós vamos achá-la. - Ele se senta, o mais longe possível de Suchila. Até onde ela poderá ter ido? - ele pergunta baixinho.
Ela não responde nada, apenas torna a se virar para a pia.Mas não recomeça a lavar. O copo continua apertado em sua mão, delicado, frágil.

Elas estavam sentadas no jardim quando isso aconteceu, Sushila num sári rosa como as buganvílias que subiam em arco. Sua irmã, usando o branco das viúvas, segurava o
bebê, cantarolando baixinho para ele, sem palavras. Sua irmã não falava desde que a doença levara embora o seu marido e o seu bebê. Mas ela tinha sido uma boa ama-de-leite para o bebê, tinha cuidado dele, protegendo-o do sol. Antes da chegada dele, Sushila nunca tivera este cuidado.
Sushila os observa, com o coração batendo mais depressa. Ela teve uma ideia. As palavras estão esvoaçando em sua cabeça, loucas para sair. Ela as tem reprimido há dias, semanas. Mas está prestes a perder a batalha. Dentro de poucos minutos, vai começar a falar, baixinho, suavemente, quase como se estivesse falando consigo mesma. Ela vai dizer que existem lugares para onde uma mulher pode ir. [...] Há lugares que recebem uma mulher, cuidam dela.
Ela irá mencionar um desses lugares, o convento da Sagrada Família. [...] Sushila irá dizer que uma criança iria sentir-se feliz num lugar como aquele, abrigado, seguro. Ela vai dizer, ainda mais suavemente, que uma criança deveria ter uma mãe que a amasse. Em seguida, ela vai se levantar, entrar em casa, deixando-os sozinhos no jardim. Ela os deixará sozinhos por um longo tempo. Sua irmã é muda, mas não é burra.

Sushila está terminando o banho. Ela pega a canca de lata , joga água sobre a cabeça, sobr seus longos cabelos negros e corpo sensual. Este amoleceu no último ano, tornando-se desconfortavelmente pesado. Sua barriga agora está saliente, suas coxas roçam uma na outra quando ela anda. Seus seios estão finalmente diminuindo, mais ainda pendem no peito. Sushila não suporta tocar nesse corpo desconhecido.
Suas mãos se movem suave e mecanicamente - mergulhando a caneca, despejando a água. Ela está fria; ela estremece. Ela termina e sai do cômodo. Ela se seca, de olhos fechados. Envolve o corpo com um sári azul de seda e caminha de leve pelo corredor e entra no quarto. [...]
Sushila se senta no chão de terra, [...] e observa o marido adormecido. O rosto dele é liso, sem rugas. Ele ainda é tão bonito quanto no dia em que se casaram. [...] Ele não é um marido ruim para ela. Talvez ela mesma devesse ter tomado o caminho do convento, feito voto de silêncio e desaparecido dentro de um hábito negro, um capelo escondendo seu cabelo sedoso e abundante. Esta solução não havia lhe ocorrido na hora. Não era exatamente uma solução.[...]

A madre recebe o jovem casal amavelmente; quando a porta se fecha atrás deles, os cochichos começam entre as freiras. Como eles são bonitops! Como a pele deles é clara! O bebê tem os olhos dele? Ele é um marido? Um irmão?
Maria dorme profundamente a manhã inteira, durante as horas que o casal passa fechado com a Madre Superiora. Quando os três finalmente saem da sala, caminho juntos pelo longo corredor branco até o quarto dela.Da porta, eles vêem Maria e o bebê, dormindo. Sushila avança e toda delicadamente o ombro de Maria. Ela acorda imediatamente e, ao ver a irmã, começa a gemer. O gemido vai crescendo até se tranformar num choro medroso, entrecortado. [...]
Sundar entra, olha para a esposa. Olha para Maria. Então se inclinae tira o bebê dos braços dela. Ele se vira, abraçado à criança, com lágrimas nos olhos. Então sai. Sushila afasta algumas mechas de cabelo da testa de Maria, depois também dá meia-volta e sai atrás do marido, deixando a irmã para trás, aos cuidados das freiras. Ela não chora, mas nas semanas seguintes nunca se afasta mais do que alguns passos do marido e do filho.
Os lamentos aos poucos se tornam gemidos quase inaudíveis. Um dia, Maria volta a trabalhar no jardim. Ela não sorri e nunca fala. As freiras continuam a especular, a conjeturar, mas embora discutam o caso pelo resto da vida, inventem mil histórias diferentes, nunca saberão a verdade. Nunca chegarão nem perto dela.

Corpos em movimento
Mary Anne Mohanraj - Tradução de Léa Viveiros de Castro
Editora Rocco, 2006


Corpos em movimento é uma coletânea de histórias interligadas que traçam o pano de fundo emocional, sexual e geográfico de duas gerações de famílias do Sri Lanka na última metade do século XX. Nestas histórias, o fluxo das imigrações modela a vida, o amor e as relações, num país embebido em séculos de tradição, mas obrigado a encarar a modernização dos costumes sociais.
Numa terra de casamentos arranjados e papéis marcados, especialmente para as mulheres, as narrativas exploram o conflito entre gerações e gêneros no momento em que as pessoas fazem suas próprias escolhas acerca do futuro [...].
[...] Mary Anne Mohanraj usa as palavras com maestria para moldar momentos íntimos, fragmentos amorosos, paixões secretas, as ambições e os desafios espirituais dos mesmos de cada família em busca de um sentido para suas vidas [...]. (Orelhas)

domingo, setembro 04, 2011

Day 26: A book that makes you fall asleep



Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
- Continue, disse eu acordando.
- Já acabei, murmurou ele.
- São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou jantar com você"; "Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo."; "Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça."

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração - se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo.

Dom Casmurro
Machado de Assis
Editora Ática, 1976


Fazer uma menina de 11 anos ler "Dom Casmurro" pra escola dá nisso. Cochilei umas quatro vezes na primeira página antes de decidir que eu detestava esse livro. Aos 25, resolvi ler de novo e... Voilà! Amei. É um dos meus top ten foréva (copyright Tia Batata).

sábado, setembro 03, 2011

Day 25: A book you used to hate but now love

A Bíblia. Porque eu li antes este livro:



Geração

Ele fala sozinho. Nenhum ser humano foi ainda criado para ouvi-lo e os outros seres divinos a quem raramente irá se dirigir, quase sempre de passagem, mal parecem estar dentro de seu círcuo de atenção - espectadores na melhor das hipóteses, não colaboradores.

No princípio, Deus criou os céus e a terra. [...] [Gênesis, 1:1-25]

Ele fala para si mesmo, mas não sobre si. Ele nada diz sobre quem é ou o que pretende, e suas palavras são abruptas, sem nenhuma intenção de comunicar nada a ninguém, muito menos explicar nada, mas simplesmente decretar.
A cena não tem narrador. Não é apresentada como uma visão referendada por algum profeta que teve o privilégio de assistir ao trabalho de Deus. Mesmo assim, o efeito é o de algo ouvido atrás da porta, que se espiou escondido. Entramos em cena com a obra em andamento, e o que surpreende é que o trabalhador , apesar de estar falando consigo mesmo, não demonstra a menor hesitação. Não está cismando. Tem algo muito preciso em mente, e cada estágio de seu projeto conduz, sem pressa mas com extrema economia e de forma extremamente direta, ao estágio seguinte. Primeiro, luz. Depois, a cúpula do céu, abrindo uma gigantesca bolha no caos de água: pagua acima, água abaixo. Depois, a separação das águas inferiores para que possa surgir a terra seca. Depois a vegetação da terra recém-exposta. Depois, no quarto dia, o sol, a lua, as estrelas, para fornecer maisluz e permitir o cálculo do tempo; no quinto dia, as criaturas vivas do mar e do ar; e no sexto dia, os seres da terra.[...]

Destruidor
"Porque me arrependo de o haver feito"
Gênesis, 4-11

[...] O relato "eloísta" (de "Deus") do primeiro ato da geração humana (5:1-3) difere em diversos pontos do relato "javeísta" (do "Senhor") que precede a história de Caim e Abel. Leitores atentos poderão notar que [...] o relato de "Deus" faz da reprodução a imagem da criatividade divina e, coerentemente, omite qualquer menção ao papel da mulher: "No dia em que Deus criou o homem, À semelhança de Deus o fez; homem e mulher os criou, e os abençoou, e lhes chamou pelo nome de Adão, no dia em que foram criados. Viveu Adão 130 anos, e gerou um filho à sua semelhança, conforme a sua imagem" (5:1-3). O relato "do Senhor", ao contrário, começa com a relação sexual - "Coabitou o homem com Eva, sua mulher." (4:1) - e omite qualquer menção à semelhança entre o divino e o humano.[...]

O que torna Deus divino?

Deus [...] é no sentido mais básico da palavra o protagonista, o proto agonistes ou "primeiro ator" da Bíblia. Ele não entra na cena humana. Ele cria a cena humana, na qual entra depois. Cria o antagonismo humano que ao interagir com ele dá forma a toda a ação subsequente. Esse é o seu traço distintivo primeiro e mais óbvio.
Se a precedência de Deus faz seu antagonista humano especialmente dependente dele, todavia é verdade também que Deus é especialmente dependente de seu antagonista humano, e essa dependência torna mais complicada a tarefa a que nos propomos - explicitamente, ler a Bíblia como a história de Deus. [...] Deus não toma nenhuma atitude que não tenha o homem como seu objetivo. Não se trata nunca das "aventuras de Deus".

Deus, uma biografia
Jack Miles - Tradução de José Rubens Siqueira
Companhia das Letras, 1997


Deus como protagonista da Bíblia. Você nunca mais vai ler as Escrituras do mesmo jeito - ou melhor, você vai passar a ler a Bíblia para ver como este é o personagem mais rico da história da literatura. E o mais incompreendido também.

sexta-feira, setembro 02, 2011

Day 24: Favorite book series



O cavaleiro, um tanto obtuso, que lhes havia trazido a missiva, entregara fielmente sua mensagem oral: "Sem vestígios".
Era a esse respeito, precisamente, que eles conversavam.
— Têm, realmente, exigências estranhas, essa gente da corte, bispos e outros lordes! — disse Maltravers. — Mandam-nos matar, e que isso não se veja.
Como proceder? O veneno deixava os corpos negros: depois, seria preciso procurá-lo entre pessoas que poderiam dar com a língua nos dentes. Estrangulamento? A marca do nó corrediço fica em torno do pescoço, e o rosto se conserva todo azul.
Foi Ogle, o antigo barbeiro da Torre de Londres, quem teve o traço de genialidade. Tomás de Gournay concorreu com alguns melhoramentos para o plano, e o comprido Maltravers riu-se muito, mostrando as gengivas ao mesmo tempo que exibia seus imensos cientes.
— Será castigado por onde pecou! — exclamou ele. A idéia parecia-lhe verdadeiramente astuciosa. [...]

Esperaram pela noite. Gournay mandou preparar nas cozinhas uma boa refeição para o prisioneiro, com um pâté macio, aves assadas no espeto, uma rabada com molho. Eduardo não tinha ceado daquela maneira desde as noites de Kenilworth, na casa de seu primo Pescoço-Torto. Ficou espantado, um tanto inquieto, depois reconfortado por aquela boa comida fora do comum. Em vez de lhe trazerem uma escudela para sua cama de palha, tinham-no instalado em pequeno quarto vizinho, num escabelo, o que lhe parecia conforto miraculoso. E ele comia aqueles pratos de que quase havia esquecido o sabor. Também o vinho não lhe regatearam, um bom vinho clarete que Tomás de Berkeley mandara vir da Aquitânia. Os três carcereiros assistiam àquele bródio e piscavam os olhos uns para os outros.
— Ele não terá nem sequer tempo para digerir isso — cochichou Maltravers a Gournay.
O colossal Towurlee estava junto da porta, que obstruía completamente.
— Muito bem, agora já nos sentimos melhor, não é verdade, milorde? — disse Gournay quando o antigo soberano acabou de fazer sua refeição. — Agora vamos conduzir-te a um bom quarto, onde encontrarás uma cama de plumas.
O prisioneiro, de crânio raspado, de comprido queixo trêmulo, olhou para seus guardas com surpresa.
— Recebestes novas ordens? — perguntou. Seu tom era cheio de temerosa humildade.
— Ah! Sim, está claro que recebemos ordens e vamos tratar-te bem, milorde! — respondeu Maltravers. — Mandaram mesmo que te déssemos fogo, lá onde vais dormir, porque as noites começam a esfriar, não é mesmo, Gournay? É a estação que o exige: já estamos no fim de setembro.

Fizeram o rei descer uma escada estreita, depois atravessar o pátio relvoso do keep, em seguida subir do outro lado, junto à muralha. Seus carcereiros tinham dito a verdade: ali havia um quarto, não um quarto de palácio, mas um bom aposento, limpo e caiado, com um leito de grande colchão de penas, e uma espécie de braseiro, cheio de brasas ardentes. Aquele aposento estava quase aquecido demais.

O espírito do rei agitava-se em pensamentos confusos, e o vinho subia-lhe um pouco à cabeça. Era, pois, suficiente uma boa refeição para que se recuperasse o gosto de viver? Quais seriam as novas ordens? O que acontecera para que lhe testemunhassem tantas atenções súbitas? Talvez uma revolta no reino: Mortimer caído em desagrado... Ah! Se fosse possível tal coisa! Ou, simplesmente, talvez o jovem rei tivesse se inquietado, enfim, sobre a sorte de seu pai, e ordenado que o tratassem de maneira mais humana... Mas ainda que tivesse havido revolta e todo o povo se houvesse erguido em seu favor, jamais Eduardo aceitaria retomar o trono, jamais, disso ele fazia a Deus um juramento. Porque, rei de novo, recomeçaria a cometer erros: não fora feito para reinar. Um convento calmo, eis tudo quanto desejava, e poder passear por um belo jardim, ser servido das iguarias de que gostava... rezar, também. E depois, deixar crescer a barba e o cabelo, a menos que conservasse a tonsura, ainda que aquela lâmina, passando-lhe pelo crânio todas as semanas, lhe despertasse horríveis lembranças. Que negligência da alma, e que ingratidão aquela de não agradecer ao Criador essas coisas simples que são o bastante para tornar uma vida agradável: nutrição saborosa, aposento quente!... Havia um atiçador no fogareiro em brasa...
— Deita-te, então, milorde! A cama é boa, tu verás — disse Gournay.


E, realmente, o colchão era macio. Encontrar de novo um verdadeiro leito, que bom! Mas por que os outros três conservavam-se ali? Maltravers sentara-se num escabelo,[...], e olhava para o rei. Gournay atiçava o fogo. O barbeiro Ogle tinha na mão um chifre de boi e uma serra pequena.
— Dorme, sire Eduardo, não te preocupes conosco, nós temos um trabalho a fazer — insistiu Gournay.
— Que estás fazendo, Ogle? — perguntou o rei. — Talhas um chifre para fazer um copo?
— Não, milorde, talho um chifre, apenas, não para fazer um copo.
Depois, voltando-se para Gournay e marcando um lugar no chifre com a unha do polegar, o barbeiro disse:
— Penso que deste tamanho está bem, não achas?
O ruivo de pele de porco olhou por cima do ombro e respondeu:
— Sim, creio que está bem. Bonum est.

Depois, recomeçou a atiçar o fogo. A serra rangia sobre o chifre do boi. Quando ele se partiu, o barbeiro estendeu a parte afilada para Gournay, que a segurou, examinou, e nela meteu o atiçador ao rubro. Um cheiro acre espalhou-se, empestando no mesmo instante o aposento. O atiçador saiu pela ponta queimada do chifre. Gournay tornou a colocá-lo no fogo. Como queriam que o rei dormisse com toda aquela azáfama em torno dele? Só o teriam afastado daquela masmorra onde havia carniças para enfumaçá-lo com chifre queimado? Subitamente, Maltravers, sempre sentado e sempre olhando para Eduardo, perguntou-lhe:
— Teu Despenser, que tu amavas, tinha os enfeites sólidos?
Os dois outros soltaram uma gargalhada. Por causa daquele nome assim pronunciado, Eduardo sentiu como que um despedaçamento em seu espírito, e compreendeu que aquelas criaturas iam executá-lo ali mesmo. Preparavam-se para infligir-lhe o mesmo suplício atroz que sofrera Hugo, o Jovem?
— Não ides fazer isso! Não ides matar-me! — exclamou ele, sentando-se subitamente em sua cama.
— Nós? Matar-te, sire Eduardo? — disse Gournay, sem mesmo se voltar. — Quem poderia fazer-te acreditar numa coisa dessas? Temos ordens. Bonum est, bonum est...
— Vamos, torna a deitar-te — disse Maltravers.
Mas Eduardo não se deitava. Seu olhar, no rosto raspado e magro, ia, como o de um animal encurralado, da nuca ruiva de Tomás Gournay para o comprido rosto amarelo de Maltravers, e dali para as bochechas de boneca do barbeiro. Gournay tinha retirado o atiçador do fogo e examinava a extremidade incandescente.
— Towurlee! — chamou ele. — A mesa!
O colosso, que esperava no aposento vizinho, entrou, trazendo pesada mesa. Maltravers foi fechar de novo a porta, dando volta à chave. Por que aquela mesa, aquela espessa tábua de carvalho que se colocava geralmente sobre cavaletes? Ora, não havia cavaletes naquele quarto. E entre tantas coisas estranhas que se passavam em torno do rei, aquela mesa, trazida nos braços por um gigante, tornava-se o objeto mais insólito, mais assustador. Como se poderia matar com uma mesa? Esse foi o derradeiro pensamento claro do rei.
— Vamos! — disse Gournay, fazendo sinal a Ogle. Aproximaram-se, cada qual de um lado do leito, atiraram-se sobre Eduardo, viraram-no de barriga para baixo.
— Oh! Os patifes! Os patifes! — gritava ele. — Não, não haveis de matar-me.
Agitava-se, debatia-se, e Maltravers tinha vindo ajudá-los, e os três não foram demais. E o gigante Towurlee preparava-se para lhes trazer auxílio.
— Não, Towurlee, a mesa! — exclamou Gournay. Towurlee recordou-se do que lhe tinham recomendado. Ergueu a enorme prancha e deixou-a cair em toda a largura sobre os
ombros do rei. Gournay levantou a roupa do prisioneiro, baixou-lhe os calções, cujo tecido usado se rasgou. Era grotesco, miserável, um fundilho assim exposto, mas agora os assassinos não tinham mais disposição para rir. O rei, meio morto pela pancada e sufocando sob a tábua que o enterrava no colchão, debatia-se, esperneava. Quanta energia lhe restava ainda!
— Towurlee, agarra-lhe os tornozelos! Não, assim não, separa-os! — ordenou Gournay.
O rei tinha conseguido desembaraçar a nuca despida de sob a mesa, e virava o rosto de lado, para tomar um pouco de ar. Maltravers pesou-lhe com as duas mãos sobre a cabeça. Gournay apoderou-se do atiçador e disse:
— Ogle! Enterra o chifre, agora!
O rei Eduardo teve um sobressalto de força desesperada quando o ferro em brasa penetrou-lhe nas entranhas: o urro que soltou, atravessando as muralhas, atravessando o keep, passando por cima das lajes do cemitério, foi acordar as pessoas até mesmo nas casas do burgo. E os que ouviram aquele longo, lúgubre, pavoroso grito, tiveram, no mesmo instante, a certeza de que acabavam de assassinar o rei.

Na manhã seguinte, os habitantes de Berkeley subiram ao castelo, a fim de se informarem. Responderam-lhes que o antigo rei morrera durante a noite, subitamente, soltando um grande grito.
— Vinde ver, mas, sim, aproximai-vos — diziam Maltravers e Gournay aos notáveis e ao clero. — Estamos fazendo neste momento os arranjos mortuários. Entrai, todos podem entrar.
E as pessoas do burgo verificaram que não havia qualquer marca, nenhuma ferida, nenhuma chaga naquele corpo que estavam lavando, e que tinham o cuidado de virar e revirar diante deles. Apenas um ríctus horrível torcia o rosto do cadáver.
Tomás Gournay e João Maltravers olhavam-se: fora uma brilhante idéia aquela do chifre de boi para meter o atiçador às avessas. Verdadeiramente, uma morte sem vestígios, e, naquele tempo tão inventivo em matéria de assassínios, eles tinham descoberto um método perfeito.

A Loba de França (vol. 5) - Os reis malditos
Maurice Druon - Tradução de Flávia Nascimento
Editora Bertrand Brasil, 2005


São sete volumes - "O Rei de Ferro", "A rainha estrangulada", "Os venenos da coroa", "A Lei dos Varões", "A Loba de França", "A lis e o leão", "Quando um rei perde a França". Li a série inteirinha com dez anos, escondida do meu pai, que tinha determinado que esse não era o tipo de leitura apropriada para uma menina da minha idade. Eram sete volumes de capa dura, com ilustrações da capa em bico-de-pena, comprados pelo Círculo do Livro, lá pelos idos dos anos 1970. Foi a primeira obra adulta na minha vida de leitora.

quinta-feira, setembro 01, 2011

Day 23: The book you’ve read the most times



Repetidas vezes me defrontava com o aguerrido autoritarismo da escola encarnado no líder juvenil Shalhoub. Quando nossa classe foi obrigada a assistir a um jogo de futebol na escola, mas tivemos permissão para usar nossas próprias roupas, nossa aparência suja e desleixada despertou o escárnio dos rapazes da Sexta Superior, ainda vestidos garbosamente em seus vistosos uniformes oficiais da escola. Shalhoub caminhava junto à linha do campo, como uma espécie de monarca inspecionando uma guarda de honra lamentavelmente andrajosa, com seu rosto mal escondendo o fastio e a indiferença que seu andar desdenhoso irradiava. Com um enorme cravo branco na lapela, elegantes sapatos pretos lustrosos e gravata de listras brilhantes, ele era a própria imagem do arrogante líder juvenil. Então Hamdollah cacarejou bem alto: "Puxa, que bela figura você faz, capitão Shalhoub", diante do que o ultrajado Shalhoub se deteve e acenou para que Hamdollah e eu saíssemos do campo e o acompanhássemos. Um ato de lesa-majestade havia sido cometido.

Ele nos fez marchar até a sua sala, [...] e depois de me dar dois tapas começou a torcer o braço do pobre Hamdollah por trás das costas. À medida que a pressão e a dor aumentavam, o estudante bem mais jovem gemia queixosamente, com o braço prestes a quebrar. "Por que você está fazendo isso, capitão?", ao que Shalhoub respondeu em seu inglês impecável e fluente: "Porque, para falar a verdade, gosto disso". O braço de Hamdollah não quebrou, e Shalhoub ficou entediado com seu cansativo passatempo. "De volta ao campo de futebol", comandou, "e que eu não ouça mais nenhuma palavra de vocês."

Não me lembro de tê-lo visto outra vez desde então, a não ser a certa distância, durante o último dia de aula [...]. Só voltei a ter notícia de Shalhoub uma década depois, quando ele se tornou Omar Sharif, marido de Faten Hamama e astro de cinema cuja estréia americana, em 1962, foi em Lawrence da Arábia, de David Lean.

[...]

Hoje me parece inexplicável que, tendo dominado nossas vidas ao longo de gerações, o problema da Palestina e de sua trágica perda [...] pudessem ser em tão grande medida sufocado por meus pais, omitido de suas discussões e mesmo de seus comentários.

[...] Meu pai e nós, seus filhos, estávamos todos protegidos da política da Palestina por nossos talismânicos passaportes norte-americanos, graças aos quais passávamos pelos funcionários da alfândega e de imigração com o que parecia ser uma facilidade risível, comparada com as dificuldades enfrentadas pelos menos privilegiados e menos afortunados naqueles anos de guerra e pós-guerra. Minha mãe, porém, não tinha um passaporte norte-americano.

Depois da queda da Palestina, meu pai empenhou-se seriamente - até o fim da vida - em tentar obter algum documento norte-americano para minha mãe, mas não conseguiu. Como sua viúva, ela tentou até o fim e também fracassou. Restrita a um passaporte palestino logo substituído por um laissez-passer, minha mãe viajava conosco como um empecilho levemente cômico.

Meu pai contava rotineiramente a história de como o documento dela era colocado embaixo da nossa pilha de vistosos passaportes verdes dos Estados Unidos, na esperança vã de que o funcionário da imigração a deixasse passar como um de nós. Isso nunca acontecia. Havia sempre a entrada em cena de um agente mais graduado que, com ar circunspecto e voz grave, chamava meus pais de lado para explicações [...]. Quando finalmente passávamos, o significado da anômala existência dela, representada por um documento embaraçoso, nunca era explicada a mim como a conseqüência de uma dilacerante experiência coletiva de expropriação.

[...] A ironia da busca infrutífera de minha mãe por cidadania é que depois de 1956, mediante a intervenção do embaixador do Líbano no Egito, ela pediu com sucesso a cidadania libanesa, e até sua morte, em 1990, viajou com um passaporte libanês, no qual, misteriosamente, seu local de nascimento foi trocado de Nazaré para o Cairo. [...] Tudo foi bem até o final dos anos 70, quase uma década depois da morte de meu pai, quando ser portadora de um passaporte libanês implicou para ela grandes dificuldades em conseguir vistos para a Europa e para os Estados Unidos e em passar por barreiras de imigração: ser libanês havia de repente se tornado sinônimo de ter tendência para o terrorismo, e assim minha mãe obstinadamente orgulhosa sentiu-se de novo estigmatizada. Mais uma vez fizemos investigações a respeito de cidadania - afinal, como viúva de um veterano da Primeira Guerra Mundial e mãe de cinco cidadãos, ela parecia plenamente digna da honraria - e mais uma vez disseram-lhe que teria de morar nos Estados Unidos. E de novo ela recusou, preferindo os rigores da vida em Beirute sem telefone, luz elétrica e água, ao conforto de Nova York ou Washington. Então foi surpreendida pelo retorno do seu câncer de mama [...]

Ela sabia talvez que seu fim estava próximo [...]. Comprou para si um condomínio [...] e - com seu visto de visitante - foi ficando por períodos cada vez mais longos de tempo, consultando com regularidade seu médico [...]. Um desses vistos expirou na mesma época que ela perdeu a consciência [...], e minha irmã Grace, que estava morando com ela e cuidando altruisticamente de sua saúde, viu-se envolvida em interrogatórios sobre deportação enquanto minha mãe se aproximava de seus últimos dias. O caso acabou sendo encerrado por um juiz irado que passou uma descompostura no advogado do Serviço de Imigração e Naturalização por tentar deportar uma mulher de mais de setenta anos em estado de coma.

Fora do lugar - Memórias
Edward Said - Tradução de José Geraldo Couto
Companhia das Letras, 2004


Mora na minha mesa de cabeceira, de onde é tirado ao menos três vezes ao mês. Estas são as minhas passagens preferidas.