quarta-feira, setembro 26, 2012

Somente

Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos, 


          pensem bem se isto é um homem
          que trabalha no meio do barro,
          que não conhece paz,
          que luta por um pedaço de pão,
          que morre por um sim ou por um não.
          Pensem bem se isto é uma mulher,

          sem cabelos e sem nome,
          sem mais força para lembrar,
          vazios os olhos, frio o ventre,
          como um sapo no inverno.

Pensem que isto aconteceu:
e lhes mando essas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar
repitam-nas a seus filhos.

          Ou senão, desmorone-se a sua casa,
          a doença os torne inválidos,
          os seus filhos virem o rosto para não vê-los.



Na manhã do dia 21, porém, soube-se que os judeus seriam levados no dia seguinte. Todos, sem exceção. Inclusive as crianças, os velhos, os doentes. Não se sabia para onde. A ordem era preparar-se para uma viagem de quinze dias. [...]

Para os condenados à morte, a tradição prescreve um austero cerimonial, a fim de tornar evidente que já não existe paixão nem raiva; apenas medida de justiça, triste obrigação perante a sociedade, tanto que até o verdugo pode ter piedade da vítima. Evita-se ao condenado, portanto, toda preocupação externa; a solidão lhe é concedida e, se assim ele o desejar, todo conforto espiritual; procura-se, enfim, que não perceba ao redor de si nem ódio, nem arbitrariedade, mas necessidade e justiça e, junto com a pena, o perdão.

Nada disso, porém, nos foi concedido, já que éramos muitos, e pouco o tempo. Além do mais, do que deveríamos nos arrepender ou sermos perdoados? O comissário italiano providenciou para que todos os serviços continuassem funcionando até o anúncio definitivo; na cozinha trabalhou-se como sempre, nas equipes de limpeza também; até os professores da pequena escola deram aula à noite, como nas noites anteriores. Só que as crianças não receberam dever para o dia seguinte.

A noite chegou, e todos compreenderam que olhos humanos não deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite dessas. Nenhum dos guardas, italianos ou alemães, animou-se a vir até nós para ver o que fazem os homens quando sabem que vão morrer.

Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais convincente. Uns rezaram, outros se embebedaram; mergulharam, alguns, em nefanda, derradeira paixão. As mães, porém, ficaram acordadas para preparar com esmero as provisões para a viagem, deram banho nas crianças, arrumaram as malas, e, ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar. Elas não esqueceram as fraldas, os brinquedos, os travesseiros, nem todas as pequenas coisas necessárias às crianças e que as mães conhecem tão bem. Será que vocês não fariam o mesmo? Se estivessem para ser mortos, amanhã, junto com seus filhos, será que hoje não lhes dariam de comer?

No barracão nº 6 morava o velho Gattegno, com a  mulher, os filhos, os genros, as noras trabalhadeiras. [...] As mulheres foram as primeiras a ocupar-se dos preparativos da viagem, caladas e rápidas, para que não faltasse tempo para o luto e, quando tudo ficou pronto, assado o pão, amarradas as trouxas, então tiraram os sapatos, soltaram o cabelo, fincaram no chão as velas fúnebres e as acenderam, conforme o uso de seus antepassados; sentaram em círculo para a lamentação, rezaram e choraram durante toda a noite. Muitos de nós ficaram na frente daquela porta; desceu dentro de nossas almas, nova para nós, a dor antiga do povo sem terra, a dor sem esperança do êxodo, a cada século renovado.

Primo Levi, "É isto um homem?"
Tradução de Luigi Del Re
Editora Rocco, 1997

Eu li este livro há uns bons dez anos, e nunca mais o reli. Ontem entendi o porquê.

Um comentário:

Tina Lopes disse...

Terrível, maravilhoso, Su. E teu projeto, teu site, quando vamos ficar sabendo mais? ;)