quinta-feira, outubro 20, 2016

Não mais

Hoje em dia, quase todo supermercado tem fila para 15 itens, ou seja, se você tem na sua cesta ou no carrinho menos de 15 itens, pode pagar no caixa destinado a clientes que querem comprar 15 itens ou menos. Simples.

Mas aí o cara chega no caixa, bota sobre a esteira a cesta e tira dela 16 itens. “Senhor, este caixa permite apenas compras de até 15 itens”, protesta polidamente a caixa. O cliente então olha diretamente nos olhos dela e diz, com ar de superioridade, “Ora, é apenas um item a mais, não é um problema assim tão grande, não?” e sorri. A jovem não retruca (foi-lhe dito no treinamento que o cliente sempre tem razão), abaixa a cabeça, fecha a compra, embala tudo e o homem sai, cabeça erguida, com seus 16 itens.

A fila continua a andar. Alguns clientes resmungam, outros sorriem, alguns mais resolvem ignorar o ocorrido (“Tem gente mal educada em todo lugar, o que se pode fazer? Nada.”). Lá atrás, um rapaz viu a cena. Baixa os olhos, conta quantos itens tem na cesta: são 14. Ele quer levar ainda um pacote de batatas fritas, uma cerveja e um chocolate. “Ah, foda-se”, pensa, enquanto vai pegando o que quer nas gôndolas por entre as quais a fila serpenteia. Ao chegar sua vez, ele olha firmemente a funcionária do caixa, depois de despejar o conteúdo da cesta na esteira. A moça não fala nada; apenas baixa o olhar, registra tudo, embala as compras e recebe o dinheiro, em silêncio.

Na fila do lado, outro homem observa a cena e sorri: ele tem quase 20 itens no carrinho. Quando chega a sua vez, encara a mulher sentada do outro lado da esteira - mas, para sua surpresa, ela se recusa a registrar suas compras. “O senhor tem 19 itens, e este caixa é somente para compras de até 15”, diz ela. “Isso é ridículo! É pouca coisa a mais!”, diz ele, ainda divertido e já irritado. A caixa continua a argumentar e a mostrar a placa onde se lê “Compras até 15 itens”, e ele começa a erguer a voz, a se inclinar sobre a esteira. Ela permanece inalterada, e gesticula chamando a fiscal. “Esse senhor quer passar mais compras que o permitido.” “Senhor, infelizmente não podemos registrar o que o senhor comprou porque...”

E o impasse continua. Algumas pessoas acham a discussão uma bobagem sem tamanho (“Gente, isso acontece em qualquer lugar, qual o problema se for uma comprinha a mais? Afe!”), outros dão apoio à funcionária, outros obviamente não dão a mínima. O caso é levado ao gerente que, depois de se aproximar e ouvir a história, se vira para a caixa e para a fiscal e diz “Pra que essa confusão por causa de poucos itens? Vocês estão desperdiçando meu tempo e, pior, o tempo do cliente! Ele se enganou, pegou itens a mais, e daí? Todo mundo faz isso! Em vez de reclamar você deveria ser mais ágil, assim as compras passariam mais rapidamente, a fila andaria e o cliente não sairia daqui com o dia arruinado por conta de um problema inexistente que, no fim das contas, foi você (e aponta o dedo pra cara da caixa) quem causou.”

Fechada a conta, o cliente vai embora, feliz com seus 19 itens e porque (alguém duvidava?) ele tinha razão. O cliente sempre tem razão.

Ao longo do tempo, são muitos os que testam se conseguem passar com mais de 15 itens pelo caixa rápido. Algumas semanas depois, já era possível ver compras de 20, 25 itens rolando pelas esteiras. As funcionárias eram orientadas a não criar caso – porque, afinal, o que são algumas poucas coisas a mais? Caras novas, velha estratégia. Ainda havia quem resmungasse entre as filas, mas de nada adiantava: o cliente sempre tem razão. E foi por isso que, em poucos meses, carrinhos abarrotados se enfileiravam nos caixas de até 15 itens. Mesmo tendo quem reclamasse com o gerente (que botava invariavelmente a culpa na caixa, que sempre era “lerda demais” e “pouco inteligente”, além de “não entender nada”), muitos pensavam “Ah, isso acontece por toda parte, é da cultura, o que se há de fazer?”, enquanto uma parcela significativa (que despejava muito mais que 15 itens na esteira do caixa) achava ótimo porque “Ora, são poucos itens a mais, qual o problema?”

Lucía Pérez mostrou a tod@s nós qual é o problema.

Buenos Aires, Argentina, 19 de outubro de 2016. #NiUnaMenos



sábado, fevereiro 20, 2016

"I love the smell of book ink in the morning"


"What are you at work on now?
A. I am in turmoil over a very complex story. In the States, they publish an enormous collection of books called “The Library of Living Philosophers.” It started with John Dewey and Bertrand Russell and the last book was about Richard Rorty. For mysterious reasons — probably because there is nobody else is around — they chose me for the next one. These are books of 1,500 pages. I am supposed to write 100 pages of philosophical autobiography. And there are 25 people, working at this moment, each writing a paper on my philosophical activity. And I am supposed to read all of them and to respond to each of them with at least three or four pages each. I think I have two years to work on it, and I am hoping to die before I have to do it."

("Umberto Eco: Exploring imaginary lands with one of Italy’s masters of fiction" - Stephen Heymannov: The New York Times, 27 de novembro de 2013)