quinta-feira, setembro 27, 2012

Ninguém tasca!

(Catatau apontando no pátio seu futuro marido):

- Nossa, filha, mas esse seu paquera é um gato, hein?
- Nem vem, mãe. Eu vi primeiro.

Bram Stocker me chicoteia

Num tô mais aguentando.

quarta-feira, setembro 26, 2012

Somente

Vocês que vivem seguros
em suas cálidas casas
vocês que, voltando à noite,
encontram comida quente e rostos amigos, 


          pensem bem se isto é um homem
          que trabalha no meio do barro,
          que não conhece paz,
          que luta por um pedaço de pão,
          que morre por um sim ou por um não.
          Pensem bem se isto é uma mulher,

          sem cabelos e sem nome,
          sem mais força para lembrar,
          vazios os olhos, frio o ventre,
          como um sapo no inverno.

Pensem que isto aconteceu:
e lhes mando essas palavras.
Gravem-na em seus corações,
estando em casa, andando na rua,
ao deitar, ao levantar
repitam-nas a seus filhos.

          Ou senão, desmorone-se a sua casa,
          a doença os torne inválidos,
          os seus filhos virem o rosto para não vê-los.



Na manhã do dia 21, porém, soube-se que os judeus seriam levados no dia seguinte. Todos, sem exceção. Inclusive as crianças, os velhos, os doentes. Não se sabia para onde. A ordem era preparar-se para uma viagem de quinze dias. [...]

Para os condenados à morte, a tradição prescreve um austero cerimonial, a fim de tornar evidente que já não existe paixão nem raiva; apenas medida de justiça, triste obrigação perante a sociedade, tanto que até o verdugo pode ter piedade da vítima. Evita-se ao condenado, portanto, toda preocupação externa; a solidão lhe é concedida e, se assim ele o desejar, todo conforto espiritual; procura-se, enfim, que não perceba ao redor de si nem ódio, nem arbitrariedade, mas necessidade e justiça e, junto com a pena, o perdão.

Nada disso, porém, nos foi concedido, já que éramos muitos, e pouco o tempo. Além do mais, do que deveríamos nos arrepender ou sermos perdoados? O comissário italiano providenciou para que todos os serviços continuassem funcionando até o anúncio definitivo; na cozinha trabalhou-se como sempre, nas equipes de limpeza também; até os professores da pequena escola deram aula à noite, como nas noites anteriores. Só que as crianças não receberam dever para o dia seguinte.

A noite chegou, e todos compreenderam que olhos humanos não deveriam assistir, nem sobreviver a uma noite dessas. Nenhum dos guardas, italianos ou alemães, animou-se a vir até nós para ver o que fazem os homens quando sabem que vão morrer.

Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais convincente. Uns rezaram, outros se embebedaram; mergulharam, alguns, em nefanda, derradeira paixão. As mães, porém, ficaram acordadas para preparar com esmero as provisões para a viagem, deram banho nas crianças, arrumaram as malas, e, ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar. Elas não esqueceram as fraldas, os brinquedos, os travesseiros, nem todas as pequenas coisas necessárias às crianças e que as mães conhecem tão bem. Será que vocês não fariam o mesmo? Se estivessem para ser mortos, amanhã, junto com seus filhos, será que hoje não lhes dariam de comer?

No barracão nº 6 morava o velho Gattegno, com a  mulher, os filhos, os genros, as noras trabalhadeiras. [...] As mulheres foram as primeiras a ocupar-se dos preparativos da viagem, caladas e rápidas, para que não faltasse tempo para o luto e, quando tudo ficou pronto, assado o pão, amarradas as trouxas, então tiraram os sapatos, soltaram o cabelo, fincaram no chão as velas fúnebres e as acenderam, conforme o uso de seus antepassados; sentaram em círculo para a lamentação, rezaram e choraram durante toda a noite. Muitos de nós ficaram na frente daquela porta; desceu dentro de nossas almas, nova para nós, a dor antiga do povo sem terra, a dor sem esperança do êxodo, a cada século renovado.

Primo Levi, "É isto um homem?"
Tradução de Luigi Del Re
Editora Rocco, 1997

Eu li este livro há uns bons dez anos, e nunca mais o reli. Ontem entendi o porquê.

terça-feira, setembro 25, 2012

Meu querido amigo

Livrar-se do passado é uma experiência que toma tempo. Muito tempo. Já são dois meses arrumando as estantes de casa (ainda faltam duas) e cada livro que me passa pelas mãos tem que ser aberto, cheirado, inspecionado, minuciosamente manuseado - e de entre as páginas saem desde dedicatórias de Paulos, Alices, Anas, Sandras, Claudios e Leandros que não me fazem ouvir sinos até bilhetes apaixonados de pessoas para quem uma morte lenta e dolorosa seria muito pouco. Ao folhear cada livro caem pelo chão da sala desenhos rabiscados de minhas filhas, guardanapos de papel, flores secas, entradas de teatro e cinema, cartas - muitas cartas.

Estas me levam por outras estradas, e elas serpenteiam e se ramificam. São muitas - estradas e cartas e lembranças e saudades - quando resolvemos largar tudo e visitar o passado. Pena que não se escrevam mais cartas; eu mesmo tenho uma rabiscada & guardada Deus sabe onde (mentira: eu sei onde está. Uma parte, no meio das páginas de Paixão pelo saber - Uma breve história da Filosofia e a outra, dentro de A jogadora de go) para uma amiga querida. Eu costumo escrever coisas para pessoas de quem gosto em pedaços de papel, post its, guardanapos, versos de contas - tudo devidamente entesourado no livro que estou lendo no momento (ou que estiver mais à mão) e posteriormente esquecido. Assim, achar essas cartas (ou, antes, fragmentos) me remetem muito mais a quem eu era naquele momento - o remetente, na maior parte das vezes, ignoro que relevância tinha para mim. Mas o que eu escrevi - meu Deus, somos novas pessoas a cada dia, e não nos percebemos assim.

Querida Anuska
Estou bebericando o mesmo chope aguado há uma hora, e me pergunto se quero mesmo ser bióloga. Se quero ter uma carreira. Se teria coragem de largar tudo e ir-me embora, sabe-se lá para onde. Meus pés doem, estou arruinando meus joelhos, mas estou doida para ver os sapatos novos que Teresa trouxe de Madri. Não consigo ver a hora de experimentar meu novo vestido, de ensaiar os novos passos vindos diretamente da Feria de Sevilla deste ano. Virar dançarina de flamenco e enfartar meu pai.
O garçom está me olhando de cara feia. O bar está enchendo, o povo em pé na calçada, e eu com cara de intelectual entediada. Estou pensando em trancar a faculdade e fazer outra coisa, mas não sei o quê. Jornalismo? História? Linguas? Sei lá. Este é o quarto dia que mato aula e vou para a praia pensar no que vou fazer da minha vida.
"Fazer da vida" parece coisa de puta, não? "Fazer da vida", "fazer a vida". Preconceituosa, eu. Além de indecisa. E entediada.  (Escrito com caneta Bic num pedaço de toalha de papel, guardado dentro de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar).

Eu em lembro dessa noite, eu me lembro desse momento.
Mas eu não me lembro quem era Anuska.

sexta-feira, setembro 21, 2012

Ciclos da vida

Um amigo muito muito querido uma vez me disse que, às vezes, basta uma coisa sair do lugar na vida da gente pra tudo se mover, qual uma engrenagem, para que tudo volte a se encaixar à perfeição. Essa foi a mais perfeita imagem que alguém já me descreveu para ilustrar um momento de grandes mudanças na nossa vida.

O sonho de uma existência - um negócio próprio que vai alimentar bocas e almas, além de fazer a diferença para, no mínimo, três pessoas - está se concretizando; depois de quase 11 anos numa casa que foi inicialmente ocupada num momento de desespero e fuga (o fim do meu casamento) a locadora pediu o imóvel de volta, e eu vou ter que recomeçar em outro lugar; uma sessão de desapego interminável, que já rendeu literalmente três viagens de um pequeno caminhão baú.

E uma última história: eu tive um professor incrível na faculdade. Ele, na verdade, não lecionava para as turmas de jornalismo, mas resolvi fazer uma optativa com ele. Mesmo sendo criada por pais que lêem, foi ele que me incutiu a semente da editora, da amante incondicional de livros - foi ele que me ensinou a reverenciá-los. Ele mesmo tem uma história de vida fantástica. De família judia, foi entregue a um casal italiano aos cinco anos para que escapasse do genocídio - as duas famílias eram vizinhas na Alemanha. Sua nova família veio para o Brasil logo depois, e ele nunca soube ao certo o destino de seus parentes. Pai e mãe foram deportados - ela, grávida (ele não sabia de quanto, só lembra da barriga da mãe). Tudo o que ele sabe foi contado por seus pais adotivos. Tem apenas duas imagens dos pais, fotografados com os vizinhos.

Ele sempre buscou informações, mas não de maneira consistente. Nunca manteve contato com a família adotiva. Viúvo, não teve filhos. Há dois meses foi diagnosticado com Alzheimer. Na semana passada ele chamou alguns ex-alunos com quem ainda mantém contato. Vi meu velho professor encher os olhos d'água ao pedir nossa ajuda: ele quer saber o que aconteceu antes que esqueça o pouco que lembra. Então somos agora um grupo de seis pessoas procurando por pessoas que sumiram há mais de 50 anos. Montamos nossos planos de ataque, nossas listas de contatos (graças a Deus, gigantescas e bem fornidas) e vamos à lida.

Para quem perguntou: o nome do meu professor é Emilio di Zio (o seu nome real). Se você sabe de alguém que tenha esse sobrenome me escreva, por favor.

terça-feira, setembro 18, 2012

No fim

É preciso uma amiga muito especial te ligar do nada pra dizer que, quando uma porta se fecha, uma janela se abre. E eu quero muito acreditar nisso.

segunda-feira, setembro 17, 2012

...

Um dia você acorda depois de um fim de semana sozinha e se espreguiça na cama gigantesca, grande para somente uma pessoa, e aí bate aquela solidão doída, que dá falta de ar e deixa as mãos geladas. Sai da cama e entra na correnteza da rotina, e faz tudo igual o dia inteiro, e tem as mesmas preocupações (dinheiro criança futuro) e então você pára no meio da rua e diz chega.

Chega.

Pois é. Chega. Você estufa o peito e diz é agora, não depois. Aí sua filha mais velha, que concordou em mudar, em dar uma chance à família, manda uma mensagem por celular mais do que desaforada - depois de enfiar a mão na cara da irmã. Sua caixa de correio te traz uma ordem de despejo (porque a dona da casa resolveu fazer uma reforma sem prazo pra terminar e, pelo visto, sem prazo pra começar, também) e sua vizinha te liga pra avisar que o cachorro, que quase não anda mais, caiu e está com as patas presas sob a grade da varanda. "Você pode vir o mais rapidamente possível? Ele está gritando praticamente desde as 8h da manhã."

Aí você faz o quê? Joga o limite do Chega mais pra frente. Empurra com a barriga, finge que não viu, aumenta a capacidade de memória e aperta reiniciar. Você faz isso de novo e de novo e de novo ("Mãe, você pode ver...", "Mãe, foi ela quem começou", "Filha, pode ver pra mim...", "A senhora pode comparecer...", "Você pode mandar o dinheiro...", "O prazo de 60 dias para desocupação do imóvel...") até o dia em que o sistema não volta. E aí?

E aí não sei. Espero não estar aqui pra ver.

terça-feira, setembro 11, 2012

...


 Sempre me disseram que adolescência pode ser dor e delícia. Eu tenho os dois. A delícia com a caçula, a dor com a mais velha. Todo santo dia, abrir os olhos significa a luta - para ter a última palavra, para o desafio mudo, para a malcriação velada, para o desrespeito sussurado pelas costas. "É fase", todo mundo me diz.

A rédea curta é imediatamente solta e lançada ao vento na casa do pai. TV até as 3h da madrugada e sem autocensura no controle remoto (afinal, ela tem 13 anos e fica sozinha, enquanto a casa dorme), netbook a mil durante todo o fim de semana em qualquer ponto do apartamento.

Ontem ela voltou do fim de semana com meu ex me chamando pelo primeiro nome. Respostas tortas, tom de voz petulante, agredindo verbalmente a irmã ("gorda" foi o mais suave que saiu daquela boca). Então, no elevador da casa dos meus pais, dei meia dúzia de palmadas nela. Batia sem pensar, sentindo uma raiva cega, espumante. Por um momento, eu odiei aquela menina. Minha filha adorada. Saí daquele cubículo, parei um táxi, nos enfiamos as três e ela, de mochila e uniforme, foi despejada na portaria do trabalho do pai. Assim que ele apontou na porta do elevador mandei o táxi seguir.

Cheguei em casa e chorei. Minha caçula chorou comigo o meu fracasso. Não sei se minha filha foi à escola. Não sei se tem roupas limpas, se tomou café da manhã, se tem o material necessário para assistir aula, hoje. Não sei de nada.

Só sei que sou humana, e que isso não me consola. Deveria ser mãe, antes de tudo.

quinta-feira, setembro 06, 2012

...


You know I dream in color
And do the things I want

quarta-feira, setembro 05, 2012

Então



Chega uma hora em que não temos mais nada a dizer. Triste. Faz tempo que eu não tenho o que dizer. "Então fique de boca fechada", já dizia a minha avó. Mas esse limbo existencial não é bonito, não é pitoresco, não é divertido. É um tédio. Porque eu sempre fui acostumada às grandes paixões, aos dramas intensos, à adrenalina "o que vai acontecer agora", ao amor que arrebata, ao frio na barriga. Sempre fui acostumada ao diferente. A diferença hoje é que tudo é sempre igual - e eu não estou me importando muito.

Claro que tem o meu negócio, o buraco no teto do meu quarto, o tumor do meu pai, os planos para amanhã - não O Amanhã, mas o dia seguinte a este. Eu olho o que as outras pessoas escrevem e digo puxa ele está vivendo, ela está progredindo, eles estão se divertindo. Olho a lista dos seguidores e não consigo imaginar por que diabos Zander Catta Preta é meu seguidor.

Ontem achei meu mp3 sumido há uns bons três anos. Viva eu.

Chata, a vida.

segunda-feira, setembro 03, 2012

Falta de medicação

Deve existir uma explicação lógica, plausível e bem razoável para alguém acordar numa bela manhã com uma vontade irresistível de aprender pole dance.