Livrar-se do passado é uma experiência que toma tempo. Muito tempo. Já são dois meses arrumando as estantes de casa (ainda faltam duas) e cada livro que me passa pelas mãos tem que ser aberto, cheirado, inspecionado, minuciosamente manuseado - e de entre as páginas saem desde dedicatórias de Paulos, Alices, Anas, Sandras, Claudios e Leandros que não me fazem ouvir sinos até bilhetes apaixonados de pessoas para quem uma morte lenta e dolorosa seria muito pouco. Ao folhear cada livro caem pelo chão da sala desenhos rabiscados de minhas filhas, guardanapos de papel, flores secas, entradas de teatro e cinema, cartas - muitas cartas.
Estas me levam por outras estradas, e elas serpenteiam e se ramificam. São muitas - estradas e cartas e lembranças e saudades - quando resolvemos largar tudo e visitar o passado. Pena que não se escrevam mais cartas; eu mesmo tenho uma rabiscada & guardada Deus sabe onde (mentira: eu sei onde está. Uma parte, no meio das páginas de Paixão pelo saber - Uma breve história da Filosofia e a outra, dentro de A jogadora de go) para uma amiga querida. Eu costumo escrever coisas para pessoas de quem gosto em pedaços de papel, post its, guardanapos, versos de contas - tudo devidamente entesourado no livro que estou lendo no momento (ou que estiver mais à mão) e posteriormente esquecido. Assim, achar essas cartas (ou, antes, fragmentos) me remetem muito mais a quem eu era naquele momento - o remetente, na maior parte das vezes, ignoro que relevância tinha para mim. Mas o que eu escrevi - meu Deus, somos novas pessoas a cada dia, e não nos percebemos assim.
Querida Anuska
Estou bebericando o mesmo chope aguado há uma hora, e me pergunto se quero mesmo ser bióloga. Se quero ter uma carreira. Se teria coragem de largar tudo e ir-me embora, sabe-se lá para onde. Meus pés doem, estou arruinando meus joelhos, mas estou doida para ver os sapatos novos que Teresa trouxe de Madri. Não consigo ver a hora de experimentar meu novo vestido, de ensaiar os novos passos vindos diretamente da Feria de Sevilla deste ano. Virar dançarina de flamenco e enfartar meu pai.
O garçom está me olhando de cara feia. O bar está enchendo, o povo em pé na calçada, e eu com cara de intelectual entediada. Estou pensando em trancar a faculdade e fazer outra coisa, mas não sei o quê. Jornalismo? História? Linguas? Sei lá. Este é o quarto dia que mato aula e vou para a praia pensar no que vou fazer da minha vida.
"Fazer da vida" parece coisa de puta, não? "Fazer da vida", "fazer a vida". Preconceituosa, eu. Além de indecisa. E entediada. (Escrito com caneta Bic num pedaço de toalha de papel, guardado dentro de Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar).
Eu em lembro dessa noite, eu me lembro desse momento.
Mas eu não me lembro quem era Anuska.
terça-feira, setembro 25, 2012
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Um comentário:
Anouska sou eu no Facebook. Pronto, agora você já sabe ;)
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