quarta-feira, agosto 31, 2011

Day 22: Favorite book you had to read for school



O sujeito que inventou a bagunça por certo se sentiria encabulado se visitasse o arraial do Bolacha: uma esparramação de mexidos pelo assoalho — soldadinhos, índios, livros, revistinhas, capas de discos e discos sem capas, cascas de amendoim e amendoim sem cascas, trem elétrico com muito trilho, autoramas, bombinhas de São João, mecha de balão, vara de pescar, bilhete de rifa — pior que mato onde tem cobra, a gente tinha que escolher o pedacinho de pisar e, olhando para o chão, não esquecer de olhar a frente, porque senão sim, é que decapitava o pescoço num arame esticado, que era o teleférico, semelhante Pão de Açúcar; a caixinha escorria na inclinação do arame, de parede a parede.

Lá no fundo do seu império, reinava sentado o gordo, fechado em seus pensamentos, nos quais não prestava nenhuma atenção: o que fazia era comer torradas, numa tostadeira automática que apitava quando o pão estava no ponto e por um mecanismo de mola, jogava o pão no ar feito foguete e, com tal precisão, que caía no prato do lado, sempre no mesmo lugar. E enquanto passava a geléia vermelha na torrada aterrisada, já punha outro quadrado de pão na máquina e o tempo justo de comer essa uma é que a máquina levava para apitar a outra.

A reunião da noite no quarto do Bolacha começou num ar de muito desânimo porque, além de terem perdido a pista o Edmundo estava de cara inchada e o gordo de joelho esfolado.
— O sistema do cambista é perfeito — disse Edmundo. — Não há maneira de seguir um fulano prevenido assim. A polícia fracassou, os detetives do seu Tomé fracassaram e nós também.
— E agora, que se sabe seguido, vai se prevenir em dobro — observou Pituca.
— E que paciência de chinês que ele tem; toma mais de duas horas, cada dia, só em caminhos despistantes.
— Seu Tomé tem razão, esbarramos num osso duro. 0 chefe dessa quadrilha aí é danado de tigre, não dá pé!
0 Bolachão ouvia quieto, como costume, ocupado nas torradas. A tostadeira deu um apito e — fuim — jogou a torrada no ar; o gordo aparou a torrada antes de cair no prato, pôs a geléia com a outra mão e ia comer, quando, de repente, largou torrada e geléia e levantou-se de supetão.
— Pera aí. Tem uma idéia mexendo na minha cabeça, parece boa. Ela vai, volta, mas não consigo pegar, foge logo.
Estava com cara diferente, de quem está inspirado, e começou a andar daqui prali; ia até o trem elétrico, dava meia volta, passava no posto de gasolina, no aviãozinho, na ambulância, parava no autorama e voltava de novo.
— O gordo entrou em transe — gozou Pituca.
— Psiu! — exclamou o gordo. — A idéia está crescendo, vem vindo, vem vindo, chi!, mergulhou de novo.
E continuou, norte-sul-leste-oeste, andando e voltando no meio dos brinquedos e também falando sozinho.
— Pra mim isso aí é macumba — gracejou Edmundo. — Baixou o espírito no Bolacha.
— Como é metido esse gordo — disse Pituca. — Vê se para ter uma idéia precisa esse carnaval.
— Peguei-te! — gritou o gordo e deu uma palmada na testa — Vamos seguir o cambista ao avesso. Está aí.
— Seguir ao avesso?
— O cambista chega no Largo de São Bento às duas horas, sai às três e meia e faz aquele sistema de despistamento para não ser seguido. Mas, para ir de sua casa ao Largo de São Bento, ele com certeza vai direto. Despista quando vai mas não quando vem.
— Explique melhor.
— A gente espera o cambista antes das duas horas no Largo de São Bento, vemos ele chegar e marcamos o lugar de onde veio. No dia seguinte, um pouco mais cedo, a gente fica no lugar que ele apareceu na véspera e marcamos o lugar de onde veio para chegar ali, e assim vamos fazendo, marcando os pontos de onde vem, e no fim damos no lugar de onde partiu. Tá? Isto se chama seguir pelo avesso, ao revés, ao contrário, de trás pra diante, inversamente, revirado. . .
— Chega! — disse Edmundo. — Até parece que o gordo engoliu a pílula do doutor caramujo, passou de mudo pra falante. Começo a entender, mas vamos devagar que senão me funde o cérebro. Até aí está certo, mas me diga: e se o cambista entra em contacto com a fábrica clandestina depois que sai do Largo de São Bento? Não adiantava nada segui-lo antes das duas.
— Adianta sim. Seguindo do jeito que falei, chegamos na casa do cambista. Bom, então a gente deixa ele ir para a cidade e fica esperando lá. De tardinha, na hora que ele voltar, a gente marca o ponto de onde veio e segue ele pelo contrário do mesmo jeito, só que desta vez de sua casa para a cidade. Aí ficaremos sabendo o que faz depois dos trajetos despistantes. Capito?
Edmundo pensou um pouco, deu uma gargalhada e abraçou Bolachão.
— For-mi-dá-vel! É a idéia mais bigue que vi até hoje, juro por Deus!
Pituca olhava com ar de sem graça.
— Ficou todo mundo doido! A gente sai de tarde e chega de manhã na casa do homem, de cabeça para baixo.
— Não é de cabeça para baixo, Pituca. É ao avesso.
— Ah sei. A gente sai depois e chega antes; espere um pouco, deixa eu pensar. Vem, marca, volta pra trás, depois chega mais cedo, marca, vem, volta, bolas!, não, não entendo. Isso não existe, o cambista não anda de costas. Só se o Bolacha inventou a máquina do tempo.
Bolachão pegou a torrada.
— Sua inteligência não alcança um raciocínio abstrato. Compreenderá quando for usado na prática.
— Chi, raciocínio abstrato, acho que o Edmundo tem razão, o gordo comeu a pílula do caramujo.
Edmundo pulava que pulava e deu mais um abraço no gordo.
— Grande, gordo! Você é o máximo.
— É — disse Pituca. — Tá tudo doido. Bó!
Estava na hora de ir dormir e Edmundo e Pituca foram saindo do quarto, pé aqui pé ali, pra não pisar nos terecos do gordo.
— Boa noite, doutor caramujo.
Piiiiii — a tostadeira apitou.

O gênio do crime
João Carlos Marinho Silva
Editora Obelisco, 1977


De vez em quando eu ainda dou umas lidinhas. A-do-ro. E esse exemplar não empresto pra ninguém.

terça-feira, agosto 30, 2011

Day 21: The best book you’ve read this year



O coronel Justo Sacrossanto cansou-se durante a manhã recebendo, em Fortaleza, correligionários interioranos [...]. Apesar do sobrenome, de sacrossanto não tem nada, ao contrário, tem fama de diabólico, o que não é novidade em se tratando de coronel a toda prova, despótico, cruel, temido. De estatura mediana, barriga pronunciada, braços e mãos enormes em proporção ao tronco. Apresenta um defeito congênito, um aleijão, não tem o braço esquerdo ou, melhor, tem, mas é outro braço direito no lado esquerdo do corpo. Resumindo, tem dois braços direitos, porque o do lado esquerdo se apega ao ombro virado para fora, como se fosse, e é, outro braço direito. Não consegue bater palmas como todo mundo, porque a mão que seria a esquerda é réplica da direita. Além do mais, não é de aplaudir. Nem precisa. [...]

Embora a obediência seja ato aprendido, não interessa se ensinado a porradas, às vezes é como questão de fé e, no caso, acredite quem quiser, ambas as mulheres são mudas de verdade. A mais alta teve a lingua cortada porque falou o que viu com quem não devia ou com quem amava em segredo. O manda-chuva mandou cortar-lhe a lingua port castigo, ciúmes e justiça, pois, se Deus manda lá em cima, cá embaixo manda o coronel Sacrossanto, ao menos nos seus domínios, o que não é pouco. Além do mais, acha que mulher muda é bicho quase perfeito: sem lingua, perde o ranço de víbora, e a boca chuca melhor.

Ordem dada, melhor cumprida, que um suspiro do coronel tem mais força que decreto de presidente da República, e, mal a ordem sai da boca, aquilo que deve ser feito já voa. [...] A outra, quase uma menina, também é muda, mas, parece, nada fez de incorreto. Corre entre a vassalagem da casa - pelo menos uma dúzia, do guarda-costas à cozinheifra - que o coronel mandou-lhe cortar a lingua somente por precaução, estratégia copiada do capitão Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. O coronel sempre se benze quando alguém fala do capitão ou do seu padrinho de batina. Claro: foi Padre Cócero quem deu, em pape, timbrado, a patente do cangaceiro. Mas o apelido, no sertão se sabe, veio da escuridão que o cabra iluminou a tiros de rifle para achar um cigarro, dizendo: "Acende, lampião!"

O coronel está relendo o título da notícia ao pé da primeira páginma de "O Democrata, jornal comunista, vez ou outra empastelado pela polícia. Mas, quando o jornal sai, o coronel trata de ler até mesmo suas entrelinhas para seguir de perto as urdiduras, as tranças do inimigo. Segura o jornal com a mão direita da direita. A notícia foi motivo de refrega que passou na cambada pela manhã. Afinal de contas, nenhum dos seus mandatários sabia ao certo o que responder. O coronel meteu-lhes o dedo na cara, dizendo que as coisas aconteceram na barba deles:

"E homem pra ser homem, ou sabe mandar, ou sabe obedecer; do contrário, a barba que tem na cara devia crescer noutro lugar."

Não deu pormenores sobre o lugar onde a barba cresceria, supondo que, na cabeça de cada ouvinte, as conjecturas do medo meteriam a barba no lugar certo.

O livro dos desmandamentos (Profecias de um excluído)
Carlos Trigueiro
Bertrand Brasil, 2004


Não me canso de ler. E o autor está lançando livro novo em setembro. Só uma coisa a dizer: oba!

segunda-feira, agosto 29, 2011

Day 20: The last book you read



No início, os contadores que traçavam as inscrições utilizavam plaquetas de barro sobre as quais desenhavam objetos e seres que desejavam representar, com a ajuda de cálamos, de talos de cana, pontiagudos. Com esses cálamos, ancestrais de nossas canetas-tinteiro e de nossas esferográficas, os sumerianos habituaram-se a talhar em bisel (obliquamente) e com eles imprimir na argila fresca sinais que tomavam a forma de "cantos" e de linhas, formando espécies de supostas "cunhas", representações dos desenhos primitivos; daí a denominação de escrita "cuneiforme", de cuneus, "cunha" em latim.

Por terem sofrido inumeráveis transformações ao longo dos séculos, nada restou de concreto de tais "sinais". Entretanto, convém saber que o desenhodos pictogramas não era uma criação livre do artista, pois foram encontrados "catálogos", listas, espécies de dicionários primitivos dos quais elaboraram os escribas. Cada símbolo podia, de acordo com o contexto, ter vários significados. O desenho de um pé podia dizer: "andar", "por-se de pé", "transportar" etc. No momento em que os sinais passam a ter uma única significação, a deles mesmos, seu número diminui. Ficam em torno de 600, o que implica, para aqueles que sabem escrever, um enorme esforço de memória.

O rébus: um jogo infantil que será a chave mestra da escrita

Porém, existe algo mais extraordinário ainda: os símbolos que os escribas imprimiam nas plaquetas de barro mole, deixadas a secar ao sol ou colocadas a cozer nos fornos, designavam coisas ou seres. O progresso decisivo consistiu em fazer com que os símbolos correspondessem aos sons das palavras da lingua falada.

Na origem da verdadeira escrita encontra-se uma invenção notável: o fonetismo. E a astúcia admirável dos sumerianos, como também dos antigos egípcios, consistiu em utilizar um procedimento tão simples quanto um jogo infantil: o rébus. - cartas enigmáticas. Eles tiveram a ideia de usar um pictograma, designando não o objeto por ele diretamente representado, mas um outro objeto cujo nome lhe era foneticamente semelhante. Como em nossos rébus onde um desenho de um gato (chat) e um desenho de um pote (pot) nada têm a ver com um felino e com um recipiente, mas com o conceito "chat-pot", que vale para chapeau (chapéu).

A escrita - Memória dos homens
Georges Jean - Tradução de Lídia da Mota Amaral
Editora Objetiva, 2002

domingo, agosto 28, 2011

Day 19: Favorite nonfiction book



De como os expedicionários equiparam Fafner* com os mantimentos essenciais para uma empresa de tal envergadura, mais sua enumeração detalhada, que generosamente transmitem a outros autonautas que possam tentar cruzeiros desta natureza.

Decidido à dar à expedição o caráter mais científico possível, o Lobo foi consultar eminentes livros de viagem a fim de aquipar Fafner* com as provisões adequadas. O diário do capitão Cook - cujo sobrenome era em si só uma promessa -proporcionou-lhe as interessantes informações que se seguem:

"Já notei a constante preocupação do Almirantado em nos facilitar todas as provisões que a experiência ou os conselhos autorizados nos levavam a considerar como favoráveis à saúde dos marinheiros; não vou abusar do tempo de meu leitor repetindo a relação completa, limitando-me às mais úteis."
"Forneceram-me uma provisão de malte, com o qual preparamos o mosto doce [...] O chucrute, de que tínhamos grande quantidade, não só de legume saudável como, em minha opinião, possui as qualidades antiescorbúticas notáveis, e não se deteriora com o tempo [...] Os tabletes portáteis de sopa..."

- Um momento - disse Carol. - Se vamos ter que viver mais de um mês engolindo essas porcarias, prefiro ficar em casa.
- Mas acontece que o capitão Cook...
- Antes que você termine a frase inutilmente, proponho que vá comigo ao supermercado da esquina, que não deve ser o Almirantado mas, em compensação, está cheio de coisas tão gostosas quanto antiescorbúticas. [...]

Os autonautas da cosmopista (ou Uma viagem atemporal Paris-Marselha)
Julio Cortázar e Carol Dunlop - Tradução de Josely Baptista
Editora Brasiliense, 1991


* Sobre Fafner, diz Cortázar: "[...] Porque o Dragão , está na hora de apresentá-lo, é uma espécie de casa rolante ou caracol que minhas obstinadas predileções wagnerianas me levaram a batizar com o nome de Fafner, [nossa] Kombi vermelha.[...] Essa história de dragão vem de uma antiga necessidade: quase nunca aceitei o nome-rótulo das coisas e penso que isso se reflete em meus livros. Não vejo motivo para tolerar invariavelmente o que nos vem de antes e de fora, e então fui colocando, nas pessoas que amei e que amo, nomes que nasciam de um encontro, de um contato entre chaves secretas, e aí mulheres foram flores, foram pássaros [...] mas voltando ao Dragão, direi que há dois anos eu o vi subindo a rue Cambronne, em Paris, vinha novinho em folha e quando me enfrentou vi sua grande cara vermelha, os olhos baixos e acesos, um ar entre atrevido e aventureiro, foi um simples click mental e já era o dragão e não um dragão qualquer, mas Fafner, o guardião do tesouro dos Nibelungos, que segundo a lenda e Wagner teria sido tonto e perverso, mas que sempre me inspirou uma secreta simpatia, talvez pelo simples fato de estar condenado a morrer nas mãos de Siegfried, e essas coisas eu não perdôo aos heróis, como trinta anos atrás não perdoei Teseu por ter matado o Minotauro. [...]

sábado, agosto 27, 2011

Day 18: A book no one would expect you to love



Certo dia, o presidente Roosevelt disse-me que estava pedindo sugestões, publicamente, sobre como se deveria chamar esta guerra. Retruquei de pronto: "a Guerra Desnecessária." Nunca houve guerra mais fácil de impedir do que esta que acaba de destroçar o que restava do mundo após o conflito anterior.

A Insânia dos Vencedores, 1919-1929

Após o término da Guerra Mundial de 1914, imperou profunda convicção e uma esperança quase universal de que reinaria a paz no mundo. Esse ardente desejo de todos os povos poderia ter sido facilmente satisfeito houvera firmeza nas convicções justas e um bom senso e uma prudência razoáveis. A expressão "a guerra para acabar com as guerras" estava em todas as bocas, e se haviam tomado providências para torná-la realidade. O presidente Wilson – presumiu-se que com a autoridade dos Estados Unidos – fixara em todas as mentes o conceito de uma Liga das Nações. Os exércitos aliados estacionavam ao longo do Reno e suas cabeçasde-ponte projetavam-se a fundo numa Alemanha derrotada, desarmada e faminta. Em Paris, os chefes das nações vitoriosas debatiam e discutiam o futuro. Diante deles abria-se o mapa da Europa, a ser redesenhado praticamente conforme bem entendessem. Após cinqüenta e dois meses de agonia e riscos, a coalizão teutônica lhes estava aos pés, e nenhum dos seus quatro membros era capaz de opor a menor resistência à vontade dos vitoriosos. A Alemanha, líder e frente da agressão, vista por todos como causa primordial da catástrofe que se abatera sobre o mundo, estava à mercê ou ao critério dos vencedores, eles mesmos cambaleantes depois da tormenta por que haviam passado. Além do mais, não fora uma guerra de governos, mas de povos. Toda a energia vital dos maiores países escoara-se aos borbotões na ira e na matança.

Os líderes guerreiros que se reuniram para a paz em Paris, no verão de 1919, para lá tinham sido levados pela mais forte e furiosa maré que jamais montou na história humana. Já ia longe o tempo dos tratados de Utrecht e de Viena, quando estadistas e diplomatas aristocráticos, vencedores e vencidos, reuniam-se numa discussão polida e cortês e, livres do clamor e da babel da democracia, podiam reformular sistemas com base nos princípios fundamentais com que todos concordavam. Os povos, exaltados por seu sofrimento e pelos grandes ensinamentos que este lhes tinha imposto, ali estavam em volta, aos milhões, a exigir que a compensação fosse plenamente extorquida. Desgraçados dos líderes, agora montados em seus inebriantes pináculos de triunfo, se pusessem a perder na mesa de conferência o que os soldados haviam conquistado em cem campos de batalha encharcados de sangue.

A França, por direito advindo de seus esforços e suas perdas, ocupava o papel principal. Quase um milhão e meio de franceses pereceram em defesa do solo pátrio sobre o qual haviam resistido ao invasor. Por cinco vezes em cem anos – em 1814, 1815, 1870, 1914 e 1918 – as torres de Notre Dame tinham visto o clarão dos canhões prussianos e ouvido o estrondo de seus disparos. Agora, por quatro anos medonhos, treze províncias da França haviam ficado sob o jugo rigoroso do comando militar prussiano. Extensas regiões foram sistematicamente devastadas pelo inimigo ou pulverizadas no confronto entre os exércitos. [...] Por quase cinqüenta anos, eles tinham vivido em meio ao terror das armas alemãs. Agora, ao preço de seu próprio sangue, essa longa opressão fora empurrada para longe. Sem dúvida, ali tinham chegado, finalmente, a paz e a segurança. Num ímpeto apaixonado, o povo francês exclamava: “Nunca mais!”

Mas o futuro vinha carregado de maus presságios. [...] A Alemanha havia combatido quase o mundo inteiro, quase sozinha, e quase vencera. [...] Desgastada e duplamente dizimada, mas indiscutível senhora do momento, a nação francesa perscrutava o futuro com um grato assombro e um medo obsedante. Onde estava, afinal, aquela SEGURANÇA sem a qual tudo o que fora conquistado parecia sem valor, e a própria vida, mesmo em meio ao júbilo da vitória, era quase insuportável? A necessidade extrema era a segurança, a qualquer preço e por qualquer meio, por mais severo ou até implacável que fosse.

No Dia do Armistício, os exércitos alemães haviam marchado em ordem para casa. "Eles souberam lutar", disse o marechal Foch, generalíssimo dos aliados, com os louros rebrilhando sobre a fronte e falando com espírito de soldado: "Que conservem suas armas." Mas exigiu que a fronteira francesa, dali por diante, fosse o rio Reno. A Alemanha podia estar desarmada; com seu sistema militar em frangalhos; com suas fortalezas desmanteladas; podia estar empobrecida; sobrecarregada com o peso de indenizações incomensuráveis; podia tornar-se presa de rixas internas; mas, em dez ou vinte anos, tudo isso passaria. O indestrutível poderio “de todas as tribos germânicas” se ergueria uma vez mais, e as fogueiras latentes da Prússia guerreira tornariam a arder e brilhar.

Mas o Reno, o largo e profundo Reno, com sua correnteza veloz, uma vez mantido e fortificado pelo exército francês, seria uma barreira e a proteção por trás da qual a França poderia viver e respirar durante gerações. Muito diferentes eram os sentimentos e opiniões do mundo de língua inglesa, sem cujo auxílio a França certamente teria sucumbido. As disposições territoriais do Tratado de Versalhes deixaram a Alemanha praticamente intacta. Continuou a ser o maior bloco racial homogêneo da Europa.

Quando o marechal Foch tomou conhecimento da assinatura do Tratado de Paz de Versalhes, comentou com singular agudeza: "Isso não é Paz. É um Armistício de vinte anos."

Memórias da Segunda Guerra Mundial
Winston Churchill - Tradução de Vera Ribeiro­
Editora Nova Fronteira, 2005

sexta-feira, agosto 26, 2011

Day 17: A book that’s a guilty pleasure



A Ditadura Envergonhada, volume 1
A Ditadura Escancarada, volume 2
Coleção As Ilusões Armadas

A Ditadura Derrotada, volume 3
A Ditadura Encurralada, volume 4
Coleção O Sacerdote e o Feiticeiro

Elio Gaspari
Companhia da Letras, 2002 a 2004


"Você gastou uma grana - UMA GRANA - e não abriu nenhum volume! NEM ABRIU! Mas tamos aqui pra mostrar pro mundo como você é culta e tales e quais. Vergonha. VERGONHAAAAAAAAAA!!!!!!!!" (dizem os livros na estante).

Mas foi um marco histórico. Não foi? Foi. Não?
Eu tinha que comprar. Fiquei um mês comendo pão e ovo - foi mais forte do que eu.

quinta-feira, agosto 25, 2011

Day 16: Favorite book that was made into a movie



As cinzas de Ângela (Angela's Ashes)
Direção de Alan Parker. Com Emily Watson e Robert Carlyle.
Baseado na autobiografia de Frank McCourt, ganhador dos prêmios Pulitzer e National Book Award por esse livro, em 1997.


quarta-feira, agosto 24, 2011

Day 15: Favorite holiday book



Eu tenho zilhares de revistinhas da Turma da Mônica dos anos 70 e 80.
Então eu leio e releio tudo sempre que estou à toa em casa.
Porque ninguém vive só de Cortázar e Shakespeare.

terça-feira, agosto 23, 2011

Day 14: A book that reminds you of someone



De: Kate Reddy, Yorkshire
Para: Debra Richardson

Querida Deb, como foi o seu Natal? [...]

Você sabe que eu sempre digo que quero estar com meus filhos. Bem, eu quero mesmo estar com meus filhos. Há noites, quando chego em casa atrasada para ler uma história para Emily antes de dormir, que vou até o cesto de roupa suja e cheiro as roupas deles. Sinto tanta saudade...

Nunca contei isso a ninguém, mas quando estou com eles, como agora, eles me parecem tão carentes... É como viver todo um caso de amor compactado num longo fim de semana - paixão, beijos, lágrimas amargas, eu te amo, não me deixe, pega um copo d'água pra mim, você gosta mais dele do que de mim, me leva pra cama, o seu cabelo é bonito, me abraça, eu te odeio.

Esgotada & histérica, preciso voltar ao trabalho o quanto antes para descansar. Que tipo de mãe tem medo dos próprios filhos?

Sua indignada,
Kate
Bjs


Estou prestes a apertar Enviar, mas em vez disso aperto Deletar. Há coisas que não se pode confessar para ninguém, nem mesmo para sua melhor amiga. Nem para você mesma.

Não sei como ela consegue
Allison Pearson - Tradução de Léa Viveiros de Castro
Editora Rocco, 2003

segunda-feira, agosto 22, 2011

Ainda ele

Dois exilados - pai e filho - estão numa ilha deserta cumprindo longa pena. Numa manhã, sentados em frente à casa, o filho pergunta: "Que pensas deste exílio?" "Será longo...", responde o pai. "E como ocupá-lo?", continua o jovem. O velho, sereno, diz apenas: "Olharei o oceano, e tu?"
Faz-se um longo silêncio antes da resposta do jovem: "Eu traduzirei Shakespeare".
Shakespeare: o oceano.

Victor Hugo
Epígrafe

Hamlet
William Shakespeare - Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos
Abril Cultural, 1976

Day 13: A book that reminds you of something/sometime



"E, quando chegar esse dia, meu amor, você se lembrará de mim."

Algum dia
De Alison McGhee - Ilustrações de Peter H. Reynolds
Tradução de Mônica Stahel
Editora Martins Fontes, 2009


domingo, agosto 21, 2011

Day 12: Favorite sci-fi book



"O que vocês fariam", perguntou o Historiador Universal, "o que poderiam fazer se soubessem que passariam o resto da vida completamente sozinhos?" [...] A situação na qual o sujeito encontra-se absolutamente só ocorreu. Um homem percebeu que estava sozinho, de modo realista e conclusivo, e que nunca mais manteria contato direto com qualquer outro ser humano. A conclusão era correta, e ele viveu os últimos anos de sua existência completamente isolado, consciente de seu destino." [...]
"Seu nome", anunciou o Historiador Universal, "era Sam Magruder. O fator capaz de afastá-lo de seus semelhantes foi o tempo, simplesmente o tempo. Ele passou a viver cerca de 800 milhões de anos antes do surgimento da espécie humana. Sua vida transcorreu dentro do intervalo normal. Mas voltar à Idade do Homem era impossível e ele sabia disso muito bem. As chances de receber a visita de outro ser humano não mereciam ser levadas em conta, racionalmente, de tão infinitesimais. E Sam Magruder era fundamentalmente racional. Portanto, ele foi absolutamente excluído do resto de sua raça, como jamais ocorrera com outro homem, pelo que sabemos."
"Mas como isso aconteceu?"
"E como ele voltou no tempo?"
"Em termos vulgares, deu um pulo no tempo - ele foi vítima do que chamamos tecnicamente de descronização."

A descronização de Sam Magruder
George Gaylord Simpson
Introdução de Arthur C. Clark, posfácio de Stephen Jay Gould
Tradução de Celso Nogueira
Editora Fundação Peirópolis, 1997


Sam Madruder era um cientista do ano 2162 que foi arremessado ao passado. Aparece num pântano, nu, absolutamente só, cercado de dinossauros, num ambiente totalmente estranho. Sobrevive e, no decorrer de cerca de vinte anos naquele mundo misterioso, registra sua impressões em lascas de pedra, mesmo sabendo da mínima probabilidade de serem encontradas. Aproximadamente 80 milhões de anos depois, essas inscrições são achadas entre fósseis. [...]
A tônica do livro são as reflexões filosóficas de Simpson/Magruder sobre o que é ser só, absolutamente único no universo, e sobre sua participação no processo evolutivo. Magruder poderia, com seus conhecimentos, interferir no curso dessa evolução, como se pretende hoje no final do século XX. Mas não o faz por um notável senso de moralidade. (Orelhas de Ubiratan d'Ambrosio)

Amo.de.paixão. Como diz Tia Batata, top ten foréva.

sábado, agosto 20, 2011

Day 11: Favorite animal book



Marianne se decidiu por uma receita de quiche de brócolis. Podia ouvir a gata do vizinho do lado de fora, rondando pelo jardim. Às vezes, os miados da gata eram tão parecidos com o choro de um bebê que ela levantava da cama quando ouvia o som. Depois, sem conseguir dormir, ia tropeçando até o quarto dos filhos, só para ter certeza de que nenhum deles a chamara. [...]

Marianne preferia pensar em como poderia ser pior. [...] Lucas tinha dez anos e não incendiava nada, não fugia de casa, não batia nas pessoas com tijolos ou bastões, não estrangulava nem estuprava pessoas, nem torturava animais. Era só um pouco maluco.
"Mas que palavra", pensou ela. Marianne já havia cruzado com ela muitas vezes – essa palavra e outras. Insano. Anomalia. Psicopata. Agora, elas caíam de sua boca por acidente, como sapos. Ela sentia as palavras escorregando para fora e caindo no chão. [...] Marianne engolia a sensação pantanosa em sua garganta. [...] De manhã, ela esmagava os comprimidos de Lucas no suco de laranja e Richard lia o jornal, tentando ignorar a gritaria no jardim.
- Qualquer dia desses vou matar essa gata. [...]

Richard estava lendo na cozinha quando ouviu um baque. Era o som pesado de um corpo batendo num objeto e isso o fez largar o jornal e correr escada acima. [...] Eles viraram para o corredor e viram Lucas parado atrás de Sarah, tentando espiar alguma coisa entre os dedos dela. Quando o menino viu Richard, voou rumo ao seu quarto e fechou a porta.
Havia um talho na testa de Sarah. [...] Nas mãos dela, estava um saco plástico claro. Quando viu os pais, ergueu o saco no alto, como um prêmio. Dentro, estava o corpo de um gatinho, emaciado e inchado, o pelo era laranja e branco. Um líquido amarronzado brotava de um dos cantos. [...]

No corredor [do hospital], Richard preenchia os formulários médicos junto com a enfermeira. Ele parou no bebedouro no caminho de volta para a sala de espera. O jato era fraco, mas foi bom para molhar os lábios. Ele ligou para a Dra. Snow do telefone público, de olho em Lucas, sentado num canto com o rosto afundado numa revista.
- Os remédios não estão funcionando.
- Às vezes isso acontece.
- Ele está ficando pior.
A Dra. Snow suspirou.
- Ataque a irmãos é bastante comum – ela sugerir terapia familiar. Marcou uma sessão para o dia seguinte. Eles deviam ir para casa e descansar. – Peça comida chinesa – aconselhou ela. – Alguma coisa leve.
Quando o carro estacionou na entrada de carros, Richard viu a vizinha. Ele entendeu que alguma coisa estava errada pelo modo como a blusa dela estava torcida.
- Não sei o que fazer – disse ela enquanto Richard baixava a janela. – Minha gata não quer sair do seu quintal. [...]
- Essa não é uma hora muito boa.
- Está tudo bem – disse Marianne. – Eu a levo – ela pôs as chaves no bolso e tirou Sarah do carro. [...] Um grande curativo branco estava colado na testa de Sarah e Richard podia ver uma seção de careca onde o médico tinha raspado o cabelo da menina. [...]
- E então? – perguntou Richard. – Qual é o problema?
A gata estava no quintal, parada em um dos cantos do jardim.
- Lamento muito por isso – disse a vizinha. – Normalmente eu consigo convencê-la a ir para casa – o rosto tremeu um pouco quando ela se aproximou da gata laranja. – Vem agora, querida – a gata sibilou e bateu na mão da mulher, depois correu de volta para o canto. [...]
A barriga vazia da gata balançava, os mamilos [entumescidos de leite] se arrastavam no chão. Quando chegou mais perto, Richard viu que seus bigodes tinham sido cortados. Ele sabia que cortar os bigodes era o mesmo que cegar; os animais os usavam para sentir aquilo que seus olhos não podiam ver. Richard deu uma olhada na casa. As cortinas estavam fechadas.
Foi até onde a gata estava sentada e futucou o chão com o pé. O sapato de Richard afundou na terra macia e, quando ele tocou o que tinha sido enterrado ali, sentiu seu ânimo desabando junto com a ponta do seu sapato, um mergulho na tristeza. Ele pensou no que estava surgindo. Havia vermes, ele podia senti-los, e grãos minúsculos abriam caminho, entrando em suas meias.

Verdadeiros animais
Hannah Tinti - Tradução de Ryta Vinagre
Editora Rocco, 2004


Um cachorro que é a única testemunha de um assassinato. Girafas de zoológico entediadas que simulam o próprio suicídio. Um urso empalhado que parece ganhar vida. São 11 contos, este é o décimo ("Sangue do meu sangue"). Em todos, os animais são personagens que correm à margem; se ausentes, porém, não haveria sentido para as histórias. Um livraço que passou quase em brancas nuvens quando foi lançado, assim como outros títulos da coleção Safra XXI, da Rocco.

sexta-feira, agosto 19, 2011

Fim de tarde

Publicar listas de livros é um ótimo recurso pra não deixar acumular poeira. Você finge que publica alguma coisa legal, as pessoas lêem e tá tudo bem - você subiu no blogroll alheio. Mas não está. Começo a duvidar até da minha própria sombra e a me perguntar mas que diabos eu estou fazendo aqui.
O que diabos eu estou fazendo aqui. Porque, na verdade, a gente começa a se olhar no espelho e sente um estranhamento quando recebe de volta o olhar daquela mulher do lado de lá. A mulher com olhos fundos como não eram, a boca meio amarga como jamais foi e a postura curva cada vez mais acentuada.
A esfiha de verduras suculenta, abominada há um quarto de século. O sono que chega antes da hora, o olhar mudo para todos aqueles livros hoje abandonados e outrora comprados com tanta sofreguidão. A absoluta falta de paciência com quem avança o sinal vermelho, joga latas sobre os sacos de batatas fritas nas gôndolas perto dos caixas, solta pelo mundo crianças sem limites e bloqueia as calçadas sem cerimônia.
Sentar-se olhando para a terapeuta e não ter nada a dizer. "E aí?", diz ela. E aí o quê, minha senhora? E aí, nada. É a vida, só isso. Ela está passando e eu estou aqui, acenando.

Day 10: Favorite classic



Desdenhemos o augúrio. Há uma iniludível providência na queda de um pardal. Se for este o momento, não está para vir; se não está para vir, é este o momento; se não é este o momento, há de vir todavia — estar pronto é tudo. Já que ninguém sabe, por coisa alguma do mundo, qual o momento exato de morrer, por que nos preocuparmos?

Hamlet
Ato Quinto, Cena II
Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos (the best)


Meu príncipe, desde sempre.

quinta-feira, agosto 18, 2011

Mentira

Então. Eu menti - o livro de ontem. Não é a bobagem que está lá, é um livro chamado "A casa das folhas" (e só de falar nele já estou sentindo as palmas das mãos suadas).

Soube desse livro ao encontrar a resenha do escritor Daniel Galera (conhece? Deveria. Mesmo.) sabe-se-lá-onde por volta de 2003 - e que você pode ler abaixo. O livro nunca foi publicado no Brasil - tentei convencer a editora pra quem eu trabalhava na época mas a justificativa foi que, como o projeto gráfico é extremamente elaborado/complicado, o preço final ficaria nas alturas.

Se você se animar (tanto pra comprar o livro lá fora quanto para enfrentar um calhamaço em inglês) eu recomendo baldes. Mas assim: não leia de noite. Não leia sozinha. Deixe tudo o que você precisa (comida, água, lenços de papel, telefone) à mão. E vá ao banheiro antes.



Assombrações e obsessões
Ainda existem livros de suspense originais?

Por Daniel Galera

Agora há pouco eu estava assistindo com a minha mãe um DVD de uma minissérie adaptada de um livro do Stephen King, "Rose Red". A história é sobre uma pesquisadora que une um time de paranormais para tentar descobrir os segredos de uma casa assombrada. Uma das características da casa é que ela se reconstrói: paredes surgem, corredores desaparecem ou se esticam, coisa e tal. E vendo o filme, me lembrei na hora de um livro que li ano passado (ou retrasado?), tão complexo e original que tenho que tomar muito cuidado para falar sobre ele sem passar uma idéia errada do que realmente seja.

O título é "House of Leaves", e o autor é Mark Z. Danielewski. Tu provavelmente nunca ouviu falar de um nem outro. Eu também não tinha, até que o Mojo me comentou por ICQ sobre um livro de terror bizarro, que estava sendo comentado na internet como uma das obras mais inventivas e assustadoras surgidas nos últimos anos. Fazendo uma pesquisa, descobri que de fato havia um grande hype "underground" a respeito de "House of Leaves". Que era um livro capaz de provocar terror profundo no leitor. Que era uma espécie de versão literária do que foi "A Bruxa de Blair" no cinema. Que era a estréia do autor, que levou nada menos que dez anos para concluir a obra. E que havia uma boa dose de discussão sobre vários aspectos do livro, entre eles a veracidade ou não de certos elementos da narrativa, principalmente do documentário "The Five and a Half Minute Hallway", que faz parte da história. Foi o suficiente para encomendar o livro na Amazon (naqueles dias a cotação do dólar ainda permitia essas extravagâncias).

Pra acabar com a curiosidade, falemos logo do que trata o livro. A história é a seguinte: Johnny Truant, um tatuador chinelão, encontra um manuscrito no apartamento de um velho chamado Zampanò, que morreu há pouco tempo. O manuscrito é uma espécie de análise pseudo-acadêmica sobre um documentário cult chamado "The Navidson Record". O documentário foi filmado por um famoso fotojornalista (Navidson), e retrata sua fantástica experiência numa casa para a qual se mudou com a família, e que de cara revela uma característica muito estranha: é sutilmente maior por dentro do que por fora. Fascinado, Truant leva o manuscrito para casa e decide que vai lê-lo e editá-lo para ser publicado. Conforme avança na leitura, contudo, coisas estranhas começam a acontecer com ele. Desmaios, pânico, perda de lucidez. Detalhe: Zampanò, o velho morto que escreveu a análise sobre o documentário, era cego.

Acompanhou até aqui? Bom, "House of Leaves", o livro em si, é o texto final editado por Johhny Truant, o tatuator. A estrutura do livro, portanto, tem três níveis: é a história da gradual loucura de um tatuador vagabundo que edita um manuscrito de autoria de um velho morto que fala sobre um documentário, "The Navidson Record", que por sua vez fala sobre a arrepiante história do fotojornalista Navidson na sua estranha casa. Além desses três níveis, há um quarto: os Editores do livro, que publicaram o manuscrito editado por Johhny Truant, também fazem comentários, em notas de rodapé (mais sobre elas a seguir).

Sigamos: o livro apresenta essa história toda como sendo real. Zampanò é creditado na folha de rosto como autor, e Johnny Traunt como editor da obra. Os documentários "The Five and a Half Minute Hallway" e "The Navidson Record" são apresentados como verdadeiros, e inclusive há dados extensivos sobre eles, além de depoimentos de personalidades reais, como Stanley Kubrick, Steven Spielberg e Camille Paglia. Mais: há uma profusão insana de notas de rodapé no livro. Na verdade, ficamos sabendo da progressiva loucura de Johnny Truant por notas de rodapé em que comenta o que está se passando com ele enquanto edita o manuscrito, e essas notas crescem ao ponto de ocuparem páginas e páginas inteiras. As notas de rodapé também remetem o tempo todo a obras, teses, filmes e entrevistas, de um modo que é impossível saber quais delas remetem a coisas reais, e quais são pura invenção do autor. Dessa maneira, o livro consegue criar uma confusão profunda sobre o que é real e o que é imaginação nas mais de 700 (sim, setecentas) páginas de "House of Leaves".

Saibam disso: depois de ler "House of Leaves", eu fui correndo pra internet fazer uma busca no Google sobre o documentário "The Navidson Record". Eu SABIA que o documentário era inventado, mas o manuscrito de Zampanò descreve e analisa cada plano do filme em tal detalhe, e as ligações com depoimentos e estudos de pessoas que são (ou não?) reais são tão elaboradas e numerosas, que acaba provocando uma OBSESSÃO em TER CERTEZA que o documentário de fato não existe. O autor consegue nos fazer ter vontade de que o filme exista, para poder assisti-lo.

Isso porque a história do fotógrafo dentro da sua casa "assombrada" (a história mostrada pelo documentário, que por sua vez é descrito e analisado minuciosamente no manuscrito de Zampanò, que por sua vez é editado por Johnny Truant, que por sua vez enlouquece ao fazê-lo) é, sem dúvida, a melhor parte do livro. Navidson, com sua esposa Karen e os filhos Chad e Daisy, mudam-se para uma nova casa. Quando começam a fazer medições para realizar reformas e instalar móveis, descobrem coisas esquisitas. As medidas do interior da casa são ligeiramente maiores do que as do exterior. Com o tempo (e sempre filmando tudo), eles descobrem que a casa é um verdadeiro festival mutante de impossibilidades físicas. Um estreito corredor surge de um dia pro outro, ligando dois pontos próximos da casa. No entanto, Navidson leva cinco minutos para percorrê-lo de ponta a ponta. O verdadeiro terror se inicia quando um dos filhos de Navidson é "engolido" pela casa, e uma passagem surge em uma parede, dando acesso a um labirinto de proporções inconcebíveis, totalmente desprovido de luz, um fosso incomensurável de escuridão, do qual surge de tempos em tempos um grunhido monstruoso. Com ajuda de um amigo, Navidson empreende cinco tentativas de exploração da passagem, cada uma delas levando a novos limites e terrores, até uma conclusão de tirar o fôlego.

Fascinante? Basta? Mas não é tudo. Somados a essa estrutura complexa, o autor recheou o livro de informações técnicas, truques e experimentalismos gráficos: símbolos, fórmulas matemáticas, notas de rodapé gigantes e não-confiáveis, partituras musicais, ilustrações, enumerações quilométricas correndo pelas margens, texto invertido e na diagonal, páginas vazias ou quase vazias, páginas saturadas de texto, frases soltas em posições bizarras, e muito mais.

Tudo isso faz de "House of Leaves", pelo menos, um dos livros mais originais que tu vai ver na tua vida. E, no que se refere à aventura de Navidson pela sua casa impossível, é um livro realmente assustador, capaz de causar alguns calafrios. E isso o autor consegue porque destrói habilmente uma das nossas certezas racionais mais estimadas: a noção de espaço e das dimensões, algo em que aprendemos a confiar desde que nascemos. E se de uma hora pra outra essas percepções deixassem de fazer sentido, e se voltassem contra nós de maneira ameaçadora? O autor chega a usar um capítulo inteiro para descrever as propriedades física do eco, apenas para terminar com uma curta cena onde Navidson vê sua filha gritar em uma sala e sua voz ecoa, quando as dimensões reduzidas do recinto tornariam qualquer eco fisicamente impossível. Não sou uma pessoa impressionável, mas ler este livro de madrugada e levantar depois para ir buscar um copo d'água na cozinha foi uma experiência um tanto enervante, devo admitir.

Ao mesmo tempo, "House of Leaves" tem problemas. O principal deles é a narrativa em primeira pessoa de Johhny Truant, o tatuador que enlouquece. O personagem é fraco, e o estilo do texto parece ser o mesmo dos mais ilegíveis blogs confessionais. E, no entanto, a história de Johhny se arrasta por páginas e páginas, MUITAS páginas, do início ao fim do livro, sem acrescentar nada, e pior, prejudicando a fruição da análise de "The Navidson Record", a história de Navidson e seu hipnótico documentário. Há algumas incoerências estruturais ao longo do livro também. E, finalmente, fica uma sensação de que, além de sua coragem e perseverança em escrever um livro como esse, Danielewski passou um pouco dos limites, saturando DEMAIS sua obra de pirotecnia pós-moderna. Os extensos apêndices do livro trazem poesias de Zampanò, correspondência de Johnny Truant com a sua mãe louca, e dezenas de arestas e gorduras dispensáveis (eu li tudo, apesar disso). Há, ainda assim, um tom geral de ironia com os cacoetes pós-modernos, que se por um lado redime o livro de seus excessos, por outro prejudica a tensão que o texto provoca.

Escrevo sobre este livro consciente de que poucos leitores da FRAUDE terão condições de lê-lo. É em inglês, precisa ser importado etc etc. Mas sempre me dirijo, prioritariamente, àqueles leitores que gostam de literatura e de livros a ponto de buscá-los e encomendá-los onde for preciso, caso fiquem intrigados. Porque sabe cumé, ler é foda.

Day 9: Saddest book you’ve ever read



Como não tem nenhuma amiga para compartilhar suas intimidades, Anne Frank escreve longas cartas a uma amiga imaginária chamada Kitty. As cartas escritas a Kitty se multiplicam com rapidez. Durante sua permanência no refúgio, o diário torna-se muito importante para ela. Serve como um desabafo. Em 16 de março de 1944, Anne anota: “O melhor de tudo é o que penso e sinto, pelo menos posso descrever; senão, me asfixiaria completamente”.

O diário de Anne Frank termina [em 1º de agosto de 1944]. No dia 4 de agosto de 1944 a Polícia de Segurança alemã, acompanhada por alguns holandeses nazistas, deu uma batida no escritório geral, obrigando Kraler a revelar a entrada para o Anexo Secreto. Todos os seus ocupantes, assim como Kraler e Koophuis, foram presos. No dia 3 de setembro, os prisioneiros judeus, após um período em Westerbork (o principal campo de concentração alemão na Holanda), foram enviados, amontoados em vagões de gado, para Auschwitz, o mais famoso centro de extermínio, na Polônia ocupada. (Kraler e Koophuis ficaram em campos de concentração holandeses durante alguns meses, antes de serem libertados).

O Anexo Secreto foi saqueado e destruído durante a batida policial. Alguns dias depois, misturados aos jornais velhos e lixo espalhados pelo chão, um limpador encontrou os cadernos onde Anne escrevera seu diário. Não sabendo do que se tratava, entregou-os a Miep e Elli. As duas moças, durante um severo interrogatório alemão a que foram submetidas, negaram terminantemente sua ajuda ao pequeno grupo judeu, e assim foram liberadas e salvas. Tendo guardado cuidadosamente o diário de Anne, entregaram-no a seu pai, Otto Frank, na sua volta, após o término da guerra.

Enquanto isso, os mais velhos do grupo adoeciam sob as terríveis condições de vida em Auschwitz. Van Daan foi mandado para a câmara de gás. Otto Frank escapou por um verdadeiro milagre, pois tinha sido enviado para um campo-hospital em novembro, e ali se encontrava ainda quando o campo foi libertado pelas forças soviéticas em 27 de janeiro de 1945. Juntamente com alguns poucos sobreviventes, ele foi removido para a Galícia e finalmente chegou ao porto de Odessa, no mar Negro, onde um navio neozelandês o conduziu de volta à Europa Oriental. Os outros prisioneiros do campo, cerca de onze mil, foram evacuados pelos alemães, à medida que os russos avançavam. Entre eles estava Peter van Daan, de quem nunca mais se teve notícia.

A caminho de Odessa, Otto Frank soube por um amigo holandês que sua mulher morrera a 5 de janeiro.

Quanto às duas meninas, foram enviadas para Bergen-Belsen, na Alemanha, dois meses após a morte da mãe. Ali Anne mostrou as mesmas qualidades de coragem e paciência na adversidade que a haviam caracterizado em Auschwitz. Em fevereiro de 1945, as duas irmãs contraíram tifo. Um dia, Margot, deitada num beliche ao lado da irmã, tentou levantar-se, mas, enfraquecida, caiu ao chão. No seu estado de doença e fraqueza, o choque foi mortal. A morte da irmã fez a Anne o que nada até então conseguira fazer: quebrantar seu espírito. Alguns dias depois, em princípio de março, Anne morreu. (Fonte: Starnews2001)

Jamais consegui ler até o fim. Sempre penso nos dois meses que separaram a morte dela da chegada dos aliados. Dois meses. Só dois meses. Eu sei que para um campo de concentração dois meses deviam ser uma eternidade.
Primeiro separaram Edith (a mãe) e as duas irmãs do pai, Otto Frank. Depois, uma outra seleção separou Edith de Anne e Margot. Edith foi selecionado para a câmara de gás, e suas filhas foram transportados para Bergen-Belsen. Edith fugiu com um amigo para outra seção do campo, onde permaneceu durante o inverno. Ela morreu de fome em janeiro de 1945, 20 dias antes de o Exército Vermelho libertar o campo e dez dias antes de seu aniversário de 45 anos.
Margot e Anne morreram com dias de diferença. As duas foram enterradas juntas, numa das muitas covas coletivas, pelas também irmãs Janny e Lientje Brandes-Brilleslijper. Através da Cruz Vermelha Janny localizou Otto Frank e contou a ele que suas duas filhas estavam mortas.
Imagino a vida de milhões de crianças engolfadas pela guerra, o mundo seguro da infância virado de pernas para o ar. E então eu simplesmente não consigo.

quarta-feira, agosto 17, 2011

Day 8: Scariest book you’ve ever read



"É uma verdade universalmente aceita que um zumbi, uma vez de posse de um cérebro, necessita de mais cérebros."

Assim começa
Orgulho e Preconceito e Zumbis, uma releitura trash do popular romance de Jane Austen. A abertura dessa cultuadíssima versão de Seth Grahame-Smith para a obra do século XIX já destaca as surpresas geradas pela praga misteriosa que se abateu sobre os campos aristocráticos do Sul da Inglaterra, onde os defuntos estão retornando à vida e partem crânios de pessoas comuns para devorar seus miolos.

No romance clássico, a autora iniciava a saga das casadouras irmãs Bennet com o aviso:"É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, possuidor de uma grande fortuna, deve estar em busca de uma esposa." Agora, porém, no tranquilo vilarejo de Meryton, nossa heroína, a guerreira Elizabeth Bennet, treinada nos rigores das artes marciais, está determinada a eliminar a ameaça zumbi. Até que sua atenção seja desviada pela chegada do altivo e arrogante Sr. Darcy. Ela conseguirá superar os preconceitos sociais dos grandes aristocratas ingleses, tão ciosos e orgulhosos de seus privilégios?

Grahame-Smith transfigura as famosas passagens do texto de Jane Austen numa deliciosa comédia de costumes. Além dos embates civilizados e repletos de cortesia entre o casal de protagonistas, inclui batalhas violentas, em confrontos cheios de sangue e ossos quebrados. Conjugando amor, emoção e lutas de espada com canibalismo e milhares de cadáveres em decomposição,
Orgulho e Preconceito e Zumbis transforma uma obra-prima da literatura mundial em outra história que você realmente terá vontade de ler.

Orgulho e Preconceito e Zumbis
Jane Austen
(pobrezinha) e Seth Grahame-Smith
Editora Intrínseca, 2010


Irc.

terça-feira, agosto 16, 2011

segunda-feira, agosto 15, 2011

Day 6: A book by your favorite author



Sob as muralhas vermelhas de Paris perfilava-se o exército da França. Carlos Magno ia passar em revista os paladinos. Encontravam-se ali havia mais de três horas; fazia calor, era uma tarde de começo de verão, meio encoberta, nebulosa; quem usava armadura fervia como se estivesse em panelas em fogo baixo. E provável que, naquela fila imóvel de cavaleiros, alguém já houvesse perdido os sentidos ou cochilasse, mas a armadura os mantinha empertigados na sela de modo uniforme.

De repente, três agudos de corneta: as plumas dos penachos agitaram-se pelo ar parado como depois de uma rajada de vento, e logo silenciou aquela espécie de rumor do mar que se ouvira até então, e era, deu para sentir, um ressoar das gargantas metálicas dos elmos. Finalmente, vislumbraram-no avançando lá do fundo, Carlos Magno, num cavalo que parecia maior que o natural, com a barba no peito, as mãos no arção da sela. Reina e guerreia, guerreia e reina, faz e desfaz, parecia um tanto envelhecido, desde a última vez que aqueles guerreiros o tinham visto.Parava o cavalo diante de cada oficial e virava-se para examiná-lo de alto a baixo.

— E quem é você, paladino da França?
— Salomon da Bretanha, sire! — respondia o militar a plenos pulmões, erguendo a viseira e mostrando o rosto afogueado; e acrescentava alguma informação prática, do tipo:
— Cinco mil cavaleiros, três mil e quinhentos soldados de infantaria, mil e oitocentos ajudantes, cinco anos de campanhas.
— Mão firme com os bretões, paladino! — dizia Carlos, e, toc-toc, toc-toc, aproximava-se de outro chefe-de-esquadrão.
— E-quem-é-você, paladino da França? — recomeçava.
— Ulivieri de Viena, sire! — escandiam os lábios assim que a grade do elmo se erguia. E direto:
— Três mil cavaleiros escolhidos, tropa de sete mil homens, vinte máquinas de assédio. Vencedor do pagão Fierabraccia, graças a Deus e para maior glória de Carlos, rei dos francos!
— Muito bem, bravo vienense — dizia Carlos Magno; e aos oficiais do séquito:
— Muito magrinhos aqueles cavalos, aumentem-lhes a ração. — E seguia adiante:
— E-quem-é-você, paladino da França? — repetia, sempre com a mesma cadência: "Tata-tatatai-tata-tata-tatata...".
— Bernardo de Montpellier, sire! Vencedor de Brunamonte e Galiferno.
— Linda cidade, Montpellier! Cidade das belas mulheres! — E dirigindo-se ao séquito:
— Vamos tratar de promovê-lo. — Todas coisas que, ditas pelo rei, dão prazer, mas eram sempre as mesmas frases, há tantos anos.
— E-quem-é-você, com esse brasão que me é familiar? — Conhecia a todos pela arma que traziam no escudo, sem que dissessem nada, mas o costume impunha que fossem eles a revelar o nome e o rosto. Se fosse de outro modo, alguém, tendo coisa melhor para fazer do que participar da revista, poderia mandar para lá sua armadura com outro dentro.
— Alardo de Dordona, do duque Amone...
— Força, Alardo, lembranças ao papai — e assim por diante. "Tata-tatatai-tata-tata-tatata..."
— Gualfré de Mongioja! Oito mil cavaleiros exceto os mortos! Ondulavam os penachos. "Uggeri Dinamarquês! Namo da Baviera! Palmerino da Inglaterra!"

Caía a noite. Os rostos, entre o bocal e a gola, já não se distinguiam muito bem. Cada palavra, cada gesto era perfeitamente previsível, como tudo naquela guerra que durava tantos anos, cada embate, cada duelo, conduzido sempre conforme as mesmas regras, de tal modo que se sabia na véspera quem havia de ganhar, perder, tornar-se herói, velhaco, quem acabaria com as tripas de fora e quem se safaria com uma queda do cavalo e a bunda no chão. Sobre as couraças, durante a noite, à luz das tochas, os ferreiros martelavam sempre as mesmas amassaduras.

— E você? — O rei chegara à frente de um cavaleiro com a armadura toda branca; só uma tirinha negra fazia a volta pelas bordas; no mais era alva, bem conservada, sem um risco, bem-acabada em todas as juntas, encimada no elmo por um penacho de sabe-se lá que raça de galo oriental, cambiante em cada nuance do arco-íris. No escudo, exibia-se um brasão entre duas fímbrias de um amplo manto drapejado, e dentro do manto abriam-se outros dois panejamentos tendo no meio um brasão menor, que continha mais um brasão amantado ainda menor. Com desenho sempre mais delicado representava-se uma seqüência de mantos que se entreabriam um dentro do outro, e no meio devia estar sabe-se lá o quê, mas não se conseguia discernir, tão miúdo se tornava o desenho.
— E você aí, que se mantém tão limpo... — disse Carlos Magno, que, quanto mais durava a guerra, menos respeito pela limpeza encontrava nos paladinos.
— Eu sou — a voz emergia metálica do interior do elmo fechado, como se fosse não uma garganta mas a própria chapa da armadura a vibrar, e com um leve eco — Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez!
— Aaah... — fez Carlos Magno, e do lábio inferior, alongado para a frente, escapou-lhe também um pequeno silvo, como quem diz: "Se tivesse de lembrar o nome de todos estaria frito!". Mas logo franziu as sobrancelhas.
— E por que não levanta a celada e mostra o rosto?
O cavaleiro não fez nenhum gesto; sua direita enluvada com uma manopla férrea e bem encaixada cerrou-se mais ainda ao arção da sela, enquanto o outro braço, que regia o escudo, pareceu ser sacudido por um arrepio.
— Falo com o senhor, ei, paladino! — insistiu Carlos Magno. — Como é que não mostra o rosto para o seu rei?
A voz saiu límpida da barbela.
— Porque não existo, sire.
— Faltava esta! — exclamou o imperador. — Agora temos na tropa até um cavaleiro que não existe! Deixe-nos ver melhor.
Agilulfo pareceu hesitar um momento, depois com mão firme e lenta ergueu a viseira. Vazio o elmo. Na armadura branca com penacho iridescente não havia ninguém.
— Ora, ora! Cada uma que se vê! — disse Carlos Magno. — E como é que está servindo, se não existe?
— Com força de vontade — respondeu Agilulfo — e fé em nossa santa causa!
— Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever. Bom, para alguém que não existe está em excelente forma!

O cavaleiro inexistente
Ítalo Calvino - tradução de Nilson Moulin
Companhia das Letras, 1999

domingo, agosto 14, 2011

Day 5: A book that makes you laugh



Edwin de Valu puxou o primeiro original de cima da pilha. Logo à mão havia um monte de cartas de recusa, prontas para serem enviadas. "Olá, mr. Jones" (Jones era o nome que eles inventaram para o responsável pelos originais). "Olá, mr. Jones! Escrevi um romance de ficção sobre -" e foi só até aí que Edwin chegou.

Em nome da Panderic Inc., eu gostaria de agradecer a interessante proposta que nos enviou. Infelizmente, após cuidadosa consideração...

Edwin pegou o manuscrito seguinte. "Prezado mr. Jones; segue anexo o meu romance As luas de Thoxth-Aqogxnir. Esta é a primeira parte de uma trilogia que..."

... e muito debate editorial, concluímos que, lamentavelmente, seu livro não corresponde às nossas necessidades editoriais do momento.

[...] "Prezados senhores: Como sabemos pouco sobre a manutenção e o conserto de geladeiras e, não obstante, como é longa e fascinante a história que esse campo apresenta."

Já pensou em submeter seu manuscrito à HarperCollins ou talvez à Random House?

...

Mr. Mead tinha falado sobre a lacuna inesperada no catálogo de outono. Fazia seis ou sete anos que todo mês de outubro a Panderic publicava um livro de um médico da Geórgia que atendia pelo nome de mr. Ethics: O guia de ética para todos um ano, Uma introdução à ética para o gerente moderno no outro, Como viver uma vida ética neste nosso mundo maluco e confuso no ano seguinte. [...] Infelizmente, algumas semanas antes mr. Ethics fora pego pela Receita Federal sob a acusação de sonegação fiscal e agora podia cumprir uma pena de oito a dez anos de prisão. [...] Toda a linha de livros de auto-ajuda de mr. Ethics fora suspensa. [...]
"Você não soube? Mr. Ethics foi condenado a três sentenças consecutivas de prisão perpétua."
"O quê? Por evasão fiscal?"
"Não. É que encontraram no quintal dele os corpos dos últimos três auditores da Receita Federal que tinham ido procurá-lo."
[...] "Ah, bem feito. O homem foi um idiota. Todo mundo sabe que a gente não enterra os cadáveres no quintal de casa. É o primeiro lugar onde vão procurar."

...

Edwin tirou o sobretudo. Tirou a gravata. Olhou-se no espelho do corredor da entrada, o rosto macilento, os olhos dois buracos abertos como brasas em linóleo barato. "Eu devia mesmo era ser escritor", pensou. "Tenho jeito para comparações".
Estava tão concentrado em suas feições abatidas, tão fascinado, numa inversão de narcisismo, que por pouco não viu o quadrado de papel amarelo preso no canto inferior do espelho. Era um post-it e dizia: "Ânimo! Você está melhor do que imagina".
Que po...
"Olá, meu bem! Chegou mais cedo!". A esposa atravessou o saguão aos pulos, vindo da cozinha e voltando para a sala, um lampejo de lycra púrpura e rosa. Ao fundo, baixinho, ouvia-se uma toada mesmerizadora: "E um e dois e três. Vamos queimar isso, vamos queimar isso". [...]
Avançando pelo corredor, Edwin foi vendo mais e mais quadrados de papel amarelo, um desfile de mensagens motivadoras. "Lembre-se: você é tão bom quanto diz que é! Melhor até!" "Saber viver é o primeiro passo para aprender a amar." "Sim, você pode! Sim, você vai conseguir!"
Que po...
Agarrou um pedaço de papel onde, numa letra jovial, estava escrito: "Você se lembrou de me abraçar hoje?" [...] Havia post-its por toda parte: na cozinha, na sala de jantar até, evidentemente, no banheiro. Estavam no abajur ("Consumo de energia! Pense no planeta, grande e azul!"), acima da máquina de lavar louça ("Pratos limpos! Mente limpa!") e na porta da geladeira ("Mais saúde e um corpo mais bonito"). [...] Edwin abriu a porta da geladeira e enfiou a mão para pegar uma lata de cerveja. Na lata - em cada lata - havia um lembretezinho de Jenni: "Tem certeza de que precisa desta cerveja? Tem certeza mesmo? Parece que alguém tem bebido muito ultimamente." [...]
Mais cedo, depois de Edwin tomar um banho e fazer a barba, Jenni o convidara a (a) fazer amor; (b) fazer sexo; ou (c) ter relações conjugais. Como sempre, fora previsível, sem inspiração e levemente decepcionante. O que equivale a dizer que a resposta foi (c). Em determinado ponto dos procedimentos, no auge da paixão morna [...], com o rosto enfiado entre as pernas dela, ele encontrou, preso do lado de dentro das coxas, um post-it que dizia: "Lembre, círculos pequenos e não muita pressão direta!"

Ser Feliz
Will Ferguson - tradução de Manuel Paulo Ferreira
Companhia das Letras, 2003

sábado, agosto 13, 2011

Day 4: The first book that made you cry



Dia após dia, uma adolescente chinesa e um jovem soldado japonês encontram-se na Praça dos Mil Ventos para uma árdua partida de go. O ano é 1937. Tropas japonesas invadem a Manchúria, e o soldado recebe a missão de, disfarçado, procurar espiões da resistência entre os jogadores que desde a alvorada se reúnem na praça.
Os dois pouco se falam. Durante o exercício quase estético que é a partida, perscrutam as almas um do outro através do movimento dos peões sobre o tabuleiro. Fora dali, suas vidas são peões em campos opostos, à mercê da empresa militar. A chinesa, ignorando estar diante do inimigo que dissemina a morte entre o seu povo, encontra na partida retomada diariamente a fuga de um cotidiano que parece estar prestes a desintegrar. O japonês, verdadeiro samurai treinado para morrer pela honra de se imperador, encontra na oponente o alento da diferença, ele que não consegue amar e satisfaz entre prostitutas o corpo castigado.
[...] Se este romance fala da brutalidade humana e do sofrimento imposto pela guerra, é também uma homenagem à beleza das coisas simples, à liberdade do amor e ao espírito de juventude que se lança adiante sem olhar para trás – girando, assim, a engrenagem do mundo.

Orelhas do livro "A jogadora de go", de Shan Sa
Tradução e orelhas de Adriana Lisboa
Editora Rocco, 2004


Um dos mais belos livros que já li na vida - numa tradução primorosa de Adriana Lisboa (consegue-se ver o talento dela em cada escolha de palavras vertidas para o português). Não dá nem pra postar um trecho: se você quer ler tudo num fôlego só (como eu fiz) qualquer pedacinho é um spoiler sem tamanho.

sexta-feira, agosto 12, 2011

Day 3: Favorite book as a child



Dona Trude

Houve, uma vez, uma meninazinha teimosa e muito curiosa; quando os pais lhe diziam alguma coisa, nunca obedecia; como poderia, pois, acabar bem?
Um dia, disse a menina aos pais:
- Ouvi falar tanto da dona Trude que tenho vontade de ir à sua casa; dizem por aí que a casa dela tem um aspecto tão esquisito e que tem tantas coisas estranhas lá! Estou morrendo de curiosidade.
Os pais proibiram-na severamente, dizendo:
- Dona Trude é uma mulher tuim, que faz coisas anormais; se fôres lá, não serás mais a nossa filhinha.
A menina, porém, não se importando com a proibição, foi direitinho à casa de Dona Trude. Quando chegou lá, Dona Trude perguntou-se:
- Por que estás tão pálida?
- Ah! - disse a menina, tremendo como vara verde - vi uma coisa que me assustou terrivelmente.
- O que viste?
- Vi na vossa escada um homem preto.
- Era um carvoeiro!
- Depois vi um homem verde.
- Era um caçador!
- Depois vi um homem vermelho-rubro como sangue.
- Era o açougueiro!
- Ah, Dona Trude, que horror! Espiei pela janela e não vos vi, mas vi o diabo com a cabeça flamejante.
- Oooh - disse ela - então viste a bruxa no seu verdadeiro uniforme; faz muito tempo que espero por ti e te desejo; vais alumiar-me!
Transformou a menina num pedaço de pau e jogou-a no fogo. Quando o pau acendeu fazendo uma bela labareda, ela sentou-se perto e aqueceu-se, dizendo:
- Como ilumina bem!

Contos e Lendas dos Irmãos Grimm - Segundo Tomo
Tradução de Íside M. Bonini - Ilustrações de Ramirez
Gráfica e Editora Edigraf
São Paulo, s/d


Época: Natal de 1976.
Eu: dez anos, rebeldezinha do Franco Brasileiro (xingava em francês).
Meus pais: sem-noção.
Uma palavra: edificante.

quinta-feira, agosto 11, 2011

Day 2: A book you don't like



Estava bravamente resolvida a ir até o fim, mas aí apareceram duas páginas de diálogos em francês e mesmo sendo ex-aluna do Franco Braszzzzzzzzzzzzzzz...

quarta-feira, agosto 10, 2011

Day 1: All-time favorite book



Ignorava quase tudo dessas mulheres; a parte que entregavam das suas vidas cabia entre duas portas entreabertas. Seu amor, do qual falavam sem cessar, parecia-me por vezes tão leve quanto uma de suas guirlandas, como uma jóia da moda, um ornamento caro e frágil. Imaginava-as ataviando-se com sua paixão tal como usavam o carmim ou colocavam seus colares. [...] Acabei por compreender que o espírito do jogo exigia esses perpétuos disfarces, esses excessos nas confidências e nas queixas, esse prazer ora aparente, ora dissimulado, esses encontros planejados como os passos de uma dança. Mesmo nas disputas esperavam de mim uma réplica antecipadamente calculada, e a bela mulher desfeita em lágrimas torcia as mãos como num palco.

Tenho pensado freqüentemente que os amantes apaixonados pelas mulheres se prendem ao templo e aos acessórios do culto tanto, pelo menos, quanto à sua própria deusa. Deleitam-se com os dedos tintos pela alcana vermelha, com os perfumes na pele, com os mil artifícios que realçam a beleza e, por vezes, fabricam-na por completo. [...] Dificilmente se poderia dissociá-las da doçura febril de certas noites de Antioquia, da excitação das manhãs de Roma, dos nomes famosos que usavam, do ambiente de luxo em que o maior requinte era mostrarem-se nuas, mas jamais sem seus adereços.

Eu teria ambicionado muito mais: queria a criatura humana despojada de tudo, sozinha consigo mesma, como teria sido forçoso que estivesse algumas vezes na doença, ou depois da morte do primeiro filho recém-nascido, ou frente a uma primeira ruga adiante do espelho. Um homem que lê, pensa ou calcula pertence à espécie e não ao sexo; nos seus melhores momentos ele escapa inclusive ao humano. No entanto, minhas amantes pareciam vangloriar-se de não pensar senão como mulheres; o espírito ou a alma que eu buscava ainda não era mais que um perfume.

Marguerite Yourcenar, "Memórias de Adriano"
Tradução de Martha Calderaro
Editora Nova Fronteira, 1980.

30 dias de livros

Eu vi isso no blog da Beatriz (onde você só entra com convite, sorry periferia!) e adorei essa ideia - resumir seu mês (e, por tabela, você mesma) em 30 livros:

Day 01: All-time favorite book
Day 02: A book you don't like
Day 03: Favorite book as a child
Day 04: The first book that made you cry
Day 05: A book that makes you laugh
Day 06: A book by your favorite author
Day 07: A book you hated but had to read for school
Day 08: Scariest book you’ve ever read
Day 09: Saddest book you’ve ever read
Day 10: Favorite classic
Day 11: Favorite animal book
Day 12: Favorite sci-fi book
Day 13: A book that reminds you of something/sometime
Day 14: A book that reminds you of someone
Day 15: Favorite holiday book
Day 16: Favorite book that was made into a movie
Day 17: A book that’s a guilty pleasure
Day 18: A book no one would expect you to love
Day 19: Favorite nonfiction book
Day 20: The last book you read
Day 21: The best book you’ve read this year
Day 22: Favorite book you had to read for school
Day 23: The book you’ve read the most times
Day 24: Favorite book series
Day 25: A book you used to hate but now love
Day 26: A book that makes you fall asleep
Day 27: Favorite love story
Day 28: A book you can quote by heart
Day 29: A book someone read to you
Day 30: A book you haven’t read yet but want to

Isso me lembra algo que eu li faz muito tempo numa Seleções: o cara se propunha a registrar como seria um ano perfeito em sua vida. Ele criou um mural gigantesco em forma de calendário, e ali descrevia por que aquele dia específico tinha sido perfeito. No meu caso, 20 de junho e 5 de julho seriam perfeitos porque nesses dias nasceram Zé Colméia e Catatau. E assim ele ia preenchendo o calendário para ter, daqui a alguns anos, o seu ano perfeito (obviamente, com a possibilidade de trocar os acontecimentos).
Enfim. Divago. Um passo muito grande. Comecemos com 30 livros.
Você vem?

terça-feira, agosto 09, 2011

RSVP

Então. Tem dois blogs que sempre mandam gente pra cá:

bdebeatriz.blogspot.com
mgabrielagalvao.blogspot.com

Mas eu não fui convidada. Não posso ver como eles são.
Você me convida? Quero muito te visitar.
Beijos,

Suzana

segunda-feira, agosto 08, 2011

...

Às vezes você quer tanto que algo dê certo, mas tanto que tem medo até mesmo de pensar naquilo - porque, assim, pode ser o que você esperava há tempos. E você tem um medo danado de que não se realize, afinal.

sexta-feira, agosto 05, 2011

O que chamamos vida



Ontem arderam-me as costas da mão direita quando tomava banho. E ali descobri, escondida entre as já muitas linhas que cobrem a pele, uma cicatriz. Fina, pequenina, esbranquiçada. Boba, ainda esfreguei a esponja ali para ver se não era corretor. Não era. Eu tenho uma cicatriz - antiga, já - nas costas da mão direita, até hoje ignorada e desconhecida.

Estica os dedos, dobra os dedos. A cicatriz sumia e reaparecia no pergaminho fino em que se transformou a pele que hoje recobre as minhas mãos. Fui procurar na mão esquerda. Outra cicatriz. E o banho virou uma caçada por marcas no meu corpo.

Examinei até onde os olhos alcançavam. Descobri mais quatro. Cicatrizes que eu não imaginava ter, nem como foram feitas, ou quando. Ignorância. Como os pequenos buraquinhos, feitos por cupins, no meu vestido favorito, e que eu não percebi até há dias; os arranhões no couro do mocassim amado e muito usado, tão à mostra na última chuva; ou as pequenas bolas amarelas que mancham as fotos dos meus avós, no aparador da casa dos meus pais, encontradas pelo feixe da lanterna quando faltou luz há um mês. Meus fios brancos escondidos na nuca, pelo tingimento inalcançáveis; os segredos das minhas filhas compartilhados com amigas, não mais comigo; os livros lançados mundo afora que jamais lerei; pessoas extraordinárias que acabam aqui e se vão, sem deixar o cheiro do que vestiram pela manhã.

Aquela sensação que podemos dominar tudo em nossa vida. A onisciência sobre o que nos rodeia. Essa ilusão foi-se e eu não percebi. Todo um mundo que eu nunca vou conhecer.

terça-feira, agosto 02, 2011

Então

LEIA SOZINHO. Diga para você mesmo o nome do único rapaz ou moça com quem você gostaria de estar (três vezes)… Pense em algo que queira realizar na próxima semana e repita para você mesmo (seis vezes). Se você tem um desejo, repita-o para você mesmo (Venha cá ANJO DE LUZ eu te INVOCO para que Desenterre ... de onde estiver ou com quem estiver e faça ele ME telefonar ainda hoje, Apaixonado e Arrependido, desenterre tudo que esta impedindo que ... venha para MIM , afaste todas aquelas que tem contribuído para o nosso afastamento e que ele jo. não pense mais nas outras… mas somente em MIM. Que ele ME telefone e ME AME. Agradeço por este seu misterioso poder que sempre dá certo. Amém…). Publique esta simpatia por três vezes , basta copiar e colar por três vezes em in forum diferente esta simpatia abaixo e logo em 48hs você terá uma linda surpresa, beijos Ainda esta noite de madrugada o TEU amor dará conta de que TE ama, algo assim acontecerá entre 1 e 4 horas da manhã esteja preparada para o maior choque de sua vida! Se romper esta corrente terá má sorte no amor. Deus vai lhe abençoárá e sua vida não será mais a mesma!!


Meu. Gizuiz. Cristinho.
Quanto mais eu rezo.
Mais assombração me aparece.
Não posso nem tirar férias desse blog que olha só.
Ci-ma-ta, minha filha.