segunda-feira, agosto 07, 2006

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Ela estava feliz hoje de manhã. E a lembrança que tem a seguir é ele torcendo o braço Dela até quase quebrar. "Pára, você vai quebrar meu braço! Larga!" E ele, em vez de largar, usou o punho Dela para lhe dar um soco no queixo. Os ouvidos zumbiram, os olhos de encheram de lágrimas. Ela ainda sentiu o pisão atrás do calcanhar. Juntou as coisas das meninas rápido, os porteiros dos edifícios e o vigia do prédio do seus pais vendo tudo. Ela catou de qualquer maneira a mala das meninas, os bichos de pelúcia, as bolsas, a bola de encher, e subiu.
E chorou, e sentiu muita dor. Abriu o catálogo e procurou "Delegacia de Atendimento à Mulher". Só duas: no Centro e em Senador Camará. Procurou na internet: "A delegacia do Centro mudará de local em breve". Ligou para os três telefones que estavam na página, e nada. Ligou 102. Mais um telefone e o endereço certo: Rua Visconde do Rio Branco 12.
Pegou um táxi - uma dor insuportável nos ouvidos e na mandíbula - e foi pra lá. Deu um número diferente, por vergonha de denunciar ao taxista que Ela tinha apanhado - e aí cabe a pergunta: por que sentir vergonha quando o agressor não foi Ela?
Os olhos ardendo, querendo chorar. A atendente loura, jovem, as unhas de um rosa bonito: "A senhora está ferida?" Não, Ela não está ferida. Não foi esfaqueada, não tem nada quebrado. Idade, profissão, estado civil, endereço, quem foi o agressor. "A senhora espere um pouquinho que já vai ser atendida".
Cinco minutos depois um investigador com uma cara de paisagem que está no lugar errado manda que Ela entre e começa a preencher, sem nenhuma intimidade com o programa, as lacunas no formulário já pronto da tela do computador. Tudo de novo: nome, endereço, telefone, dados da vítima e do agressor.
Procura o número certo do pretenso crime. Artigo 129, parágrafo 9º do Código Penal: lesão corporal. Está tudo registrado: o investigador será o detetive Luciano Coutinho Nascimento - pela aliança, casado, constrangido, esforçando-se para ser profissional e impassível, mas não insensível. Às 9h30m, encerra-se o registro: "A senhora tem que ir agora ao Instituto Médico-Legal para o exame de corpo delito. Fica nesse endereço: Rua dos Inválidos 152. Mas antes a senhora tem que passar na 5ª DP e pedir ao delegado que assine as duas vias do pedido de exame. Logo ali, na Gomes Freire".
O sol está esquentando e Ela vai andando, zonza ainda com a dor nos ouvidos e na mandíbula. Chega à 5ª DP: "Mas ele disse que vinha hoje. Não posso voltar depois, não tenho dinheiro nem pra comer". Quem atende é o Leonardo, está escrito no crachá: "Estagiário". Leonardo tem pena do semibêbado que procura um detetive (de destino ignorado). Pensa um pouco, puxa da gaveta um caderninho seboso de telefones, disca um número, nada. "Infelizmente o senhor terá que voltar na quarta. Venha na parte da manhã que ele deve estar por aqui." Deve, não estará com certeza. "Pois não?" "Preciso da assinatura do delegado nesses dois pedidos de exame de corpo delito". "O delegado não chegou; a senhora pode ir ali no prédio da Polícia Civil. Peça para falar com o delegado-dia".
E Ela vai. Sentindo dor, prestando atenção a tudo para não chorar. O velhinho de calças brilhantes e tênis modernoso sentado na entrada lendo jornal. Na delegacia-dia, um delegado atende o telefone: "Oi, não posso falar agora. Te ligo depois". Quando Ela apresenta os papéis, ele assina e puxa conversa: "Foi a primeira vez?" "Não", Ela diz. E ele quer falar que aquilo não pode acontecer, que Ela está agindo certo. "Tem filhos?" "Duas meninas". "Você está fazendo a coisa certa". Ele é bonito, esguio, olhos verdes, bronzeado. Ele sente pena Dela. "Não faz isso com você; você é jovem, é bonita, e ele é um covarde". Em qualquer tempo e espaço desse universo, ela se sentiria tão feliz em ouvir isso de um homem bonito! - mas ela só consegue dizer: "Você deveria trabalhar na Delegacia de Atendimento à Mulher".
Daí para o IML. Às 10h05, Ela entrega os papéis na portaria: "Identidade, por favor [...] Aguarde chamarem o seu nome." Vinte minutos depois, chamam o nome Dela. Mas não é Ela; é outra agredida com o mesmo nome, uma senhora gorda, idosa, com um sorriso inexplicável. Chega a vez Dela. "Quando foi? Deixou marca? Agora vá ali naquela salinha do lado da estátua."
Quem atende é a Cláudia. "Você vai falar o que aconteceu e eu vou ouvir". E Ela fala tudo, conta do começo. Do início, há quase dez anos. "Eu vou fazer algumas perguntas, é para a pesquisa que o estado faz sobre violência contra a mulher". E assim, Ela e ele são agora estatísticas da violência contra a mulher / Dados do Estado do Rio de Janeiro, ano-base 2006.
Ela sai com um monte de papéis. Na terça, vai comparecer ao Núcleo de Atendimento à Vítima de Violência Sexual - mesmo não tendo sido violentada. O estado, por falta de verba, reúne o atendimento a todo tipo de violência contra a mulher num só lugar: Rua Regente Feijó 15, Centro. Atendimento às segundas, terças e quintas, das 9h às 16h.
Última recomendação: Ela tem que ser medicada num hospital público. Próxima parada: Souza Aguiar. Chorar na frente de Cláudia ajudou, mas a dor é insuportável. Ela sai do IML às 11h03. Pega um táxi para o Souza Aguiar. A fila para se fazer a ficha é interminável. Mesmo assim, ela entra na fila, mas sai 25 minutos depois. Vai tentar o posto de saúde perto da casa dos pais.
Outro táxi. O posto, no Catete, não tem aparelho de Raio-X. Quer tentar o Rocha Maia, em Botafogo? Eles estavam sem ortopedista na semana passada, mas quem sabe um clínico geral vê a senhora.
Ela sai, pega um ônibus e pára em frente ao prédio dos pais, onde tem uma confeitaria. Pede dois pães doces de chocolate. Sobe para o apartamento, faz um café e devora os dois pãezinhos. A dor diminuiu, mas o zumbido e a surdez parcial, não.
E Ela senta para escrever isso. São quase uma da tarde e Ela ainda não trabalhou. O celular registra, de um cliente, oito chamadas não atendidas e dois recados no correio de voz. Não pensou como será a audiência pré-marcada quando se faz um Boletim de Ocorrência de agressão doméstica. O que dirá às filhas. O que dirá o ex-marido na hora que receber a intimação. Ela não quer nem pensar no depoimento que escutou sem querer no IML, de uma mulher que, ao lado do filho de 12 anos, descrevia as agressões do marido bêbado.
"Que sorte eu tenho. Fiz tudo de táxi, me enchi de chocolate, o café que fiz foi um capuccino. Vou numa clínica particular ser medicada e fazer um Raio-X. Que sorte!"
É, que sorte.