quinta-feira, setembro 21, 2006

O que é



Descobri que Teresa era bonita nas estrias que tinha nos quadris e no alto das coxas. Era bonita nas sobrancelhas que às vezes se esquecia de depilar. Era bonita em seus seios não-siliconados e não muito durinhos. Era bonita nas unhas às vezes longas e esmaltadas, às vezes roídas (uma vez ela as roeu até o sabugo enquanto assistíamos a O iluminado, aquele garotinho gritando redrum com a voz rouca e Jack Nicholson quebrando a porta a machadadas). Era bonita no pregador velho e descascado que segurava na nuca os cabelos compridos, enquanto trabalhava, e nos óculos fundo de garrafa que usava às vezes, em casa, para descansar das lentes de contato.
O amor, se existe, não é uma entidade. O amor é um milhão de pequenas coisas. Não é possível ter uma idéia genérica do que seja o amor ou procurar dicionarizá-lo. O amor é uma flor murcha, um marcador amarelo de textos, um disquete de computador, uma chave de fenda, um quadro de avisos onde se espeta um bilhete, um peso de papel azul que reproduz o globo terrestre, uma cama desfeita ao meio-dia e um copo d'água pela metade, folhas secas que o vento varreu para dentro de casa, um vulto sombrio nos olhos por causa de uma discussão com alguém, a pequena escultura mexicana de um pássaro, guardanapos de papel sobre a mesa-de-cabeceira, alguém que martela um prego em outro apartamento, uma lista telefônica aberta, mais nada.

Adriana Lisboa, "Um beijo de colombina"
Editora Rocco, 2003

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