quarta-feira, agosto 31, 2011

Day 22: Favorite book you had to read for school



O sujeito que inventou a bagunça por certo se sentiria encabulado se visitasse o arraial do Bolacha: uma esparramação de mexidos pelo assoalho — soldadinhos, índios, livros, revistinhas, capas de discos e discos sem capas, cascas de amendoim e amendoim sem cascas, trem elétrico com muito trilho, autoramas, bombinhas de São João, mecha de balão, vara de pescar, bilhete de rifa — pior que mato onde tem cobra, a gente tinha que escolher o pedacinho de pisar e, olhando para o chão, não esquecer de olhar a frente, porque senão sim, é que decapitava o pescoço num arame esticado, que era o teleférico, semelhante Pão de Açúcar; a caixinha escorria na inclinação do arame, de parede a parede.

Lá no fundo do seu império, reinava sentado o gordo, fechado em seus pensamentos, nos quais não prestava nenhuma atenção: o que fazia era comer torradas, numa tostadeira automática que apitava quando o pão estava no ponto e por um mecanismo de mola, jogava o pão no ar feito foguete e, com tal precisão, que caía no prato do lado, sempre no mesmo lugar. E enquanto passava a geléia vermelha na torrada aterrisada, já punha outro quadrado de pão na máquina e o tempo justo de comer essa uma é que a máquina levava para apitar a outra.

A reunião da noite no quarto do Bolacha começou num ar de muito desânimo porque, além de terem perdido a pista o Edmundo estava de cara inchada e o gordo de joelho esfolado.
— O sistema do cambista é perfeito — disse Edmundo. — Não há maneira de seguir um fulano prevenido assim. A polícia fracassou, os detetives do seu Tomé fracassaram e nós também.
— E agora, que se sabe seguido, vai se prevenir em dobro — observou Pituca.
— E que paciência de chinês que ele tem; toma mais de duas horas, cada dia, só em caminhos despistantes.
— Seu Tomé tem razão, esbarramos num osso duro. 0 chefe dessa quadrilha aí é danado de tigre, não dá pé!
0 Bolachão ouvia quieto, como costume, ocupado nas torradas. A tostadeira deu um apito e — fuim — jogou a torrada no ar; o gordo aparou a torrada antes de cair no prato, pôs a geléia com a outra mão e ia comer, quando, de repente, largou torrada e geléia e levantou-se de supetão.
— Pera aí. Tem uma idéia mexendo na minha cabeça, parece boa. Ela vai, volta, mas não consigo pegar, foge logo.
Estava com cara diferente, de quem está inspirado, e começou a andar daqui prali; ia até o trem elétrico, dava meia volta, passava no posto de gasolina, no aviãozinho, na ambulância, parava no autorama e voltava de novo.
— O gordo entrou em transe — gozou Pituca.
— Psiu! — exclamou o gordo. — A idéia está crescendo, vem vindo, vem vindo, chi!, mergulhou de novo.
E continuou, norte-sul-leste-oeste, andando e voltando no meio dos brinquedos e também falando sozinho.
— Pra mim isso aí é macumba — gracejou Edmundo. — Baixou o espírito no Bolacha.
— Como é metido esse gordo — disse Pituca. — Vê se para ter uma idéia precisa esse carnaval.
— Peguei-te! — gritou o gordo e deu uma palmada na testa — Vamos seguir o cambista ao avesso. Está aí.
— Seguir ao avesso?
— O cambista chega no Largo de São Bento às duas horas, sai às três e meia e faz aquele sistema de despistamento para não ser seguido. Mas, para ir de sua casa ao Largo de São Bento, ele com certeza vai direto. Despista quando vai mas não quando vem.
— Explique melhor.
— A gente espera o cambista antes das duas horas no Largo de São Bento, vemos ele chegar e marcamos o lugar de onde veio. No dia seguinte, um pouco mais cedo, a gente fica no lugar que ele apareceu na véspera e marcamos o lugar de onde veio para chegar ali, e assim vamos fazendo, marcando os pontos de onde vem, e no fim damos no lugar de onde partiu. Tá? Isto se chama seguir pelo avesso, ao revés, ao contrário, de trás pra diante, inversamente, revirado. . .
— Chega! — disse Edmundo. — Até parece que o gordo engoliu a pílula do doutor caramujo, passou de mudo pra falante. Começo a entender, mas vamos devagar que senão me funde o cérebro. Até aí está certo, mas me diga: e se o cambista entra em contacto com a fábrica clandestina depois que sai do Largo de São Bento? Não adiantava nada segui-lo antes das duas.
— Adianta sim. Seguindo do jeito que falei, chegamos na casa do cambista. Bom, então a gente deixa ele ir para a cidade e fica esperando lá. De tardinha, na hora que ele voltar, a gente marca o ponto de onde veio e segue ele pelo contrário do mesmo jeito, só que desta vez de sua casa para a cidade. Aí ficaremos sabendo o que faz depois dos trajetos despistantes. Capito?
Edmundo pensou um pouco, deu uma gargalhada e abraçou Bolachão.
— For-mi-dá-vel! É a idéia mais bigue que vi até hoje, juro por Deus!
Pituca olhava com ar de sem graça.
— Ficou todo mundo doido! A gente sai de tarde e chega de manhã na casa do homem, de cabeça para baixo.
— Não é de cabeça para baixo, Pituca. É ao avesso.
— Ah sei. A gente sai depois e chega antes; espere um pouco, deixa eu pensar. Vem, marca, volta pra trás, depois chega mais cedo, marca, vem, volta, bolas!, não, não entendo. Isso não existe, o cambista não anda de costas. Só se o Bolacha inventou a máquina do tempo.
Bolachão pegou a torrada.
— Sua inteligência não alcança um raciocínio abstrato. Compreenderá quando for usado na prática.
— Chi, raciocínio abstrato, acho que o Edmundo tem razão, o gordo comeu a pílula do caramujo.
Edmundo pulava que pulava e deu mais um abraço no gordo.
— Grande, gordo! Você é o máximo.
— É — disse Pituca. — Tá tudo doido. Bó!
Estava na hora de ir dormir e Edmundo e Pituca foram saindo do quarto, pé aqui pé ali, pra não pisar nos terecos do gordo.
— Boa noite, doutor caramujo.
Piiiiii — a tostadeira apitou.

O gênio do crime
João Carlos Marinho Silva
Editora Obelisco, 1977


De vez em quando eu ainda dou umas lidinhas. A-do-ro. E esse exemplar não empresto pra ninguém.

3 comentários:

Raquel (NY) disse...

Adoro o Bolachao e sua turma. Fiquei super triste quando soube que o JCMS tinha morrido. A edicao que eu tinha era a do Circulo do Livro, de capa dura azul reforcada que acabou caindo aos pedacos de tanto que eu li esse livro. Espero conseguir um novo para a minha filha ler daqui a uns 9 anos.

neutron disse...

meuDeus. o gênio do crime. as figurinhas, os álbuns! li na 5ª série e adorei.

e, confesso, peguei escondido quando ainda estava na faculdade... e o medo de a bibliotecária dizer: é pra você?!

Jorge Ramiro disse...

Eu gosto muito de ficção. Eu li todos os livros de Agatha Christie. Mas eu tinha um problema. Meu cachorro não me deixava ler, porque ele estava sempre com sede. Agora, eu comprei um bebedouro para cães e ele pode beber água quando quer. :)