quinta-feira, agosto 18, 2011

Mentira

Então. Eu menti - o livro de ontem. Não é a bobagem que está lá, é um livro chamado "A casa das folhas" (e só de falar nele já estou sentindo as palmas das mãos suadas).

Soube desse livro ao encontrar a resenha do escritor Daniel Galera (conhece? Deveria. Mesmo.) sabe-se-lá-onde por volta de 2003 - e que você pode ler abaixo. O livro nunca foi publicado no Brasil - tentei convencer a editora pra quem eu trabalhava na época mas a justificativa foi que, como o projeto gráfico é extremamente elaborado/complicado, o preço final ficaria nas alturas.

Se você se animar (tanto pra comprar o livro lá fora quanto para enfrentar um calhamaço em inglês) eu recomendo baldes. Mas assim: não leia de noite. Não leia sozinha. Deixe tudo o que você precisa (comida, água, lenços de papel, telefone) à mão. E vá ao banheiro antes.



Assombrações e obsessões
Ainda existem livros de suspense originais?

Por Daniel Galera

Agora há pouco eu estava assistindo com a minha mãe um DVD de uma minissérie adaptada de um livro do Stephen King, "Rose Red". A história é sobre uma pesquisadora que une um time de paranormais para tentar descobrir os segredos de uma casa assombrada. Uma das características da casa é que ela se reconstrói: paredes surgem, corredores desaparecem ou se esticam, coisa e tal. E vendo o filme, me lembrei na hora de um livro que li ano passado (ou retrasado?), tão complexo e original que tenho que tomar muito cuidado para falar sobre ele sem passar uma idéia errada do que realmente seja.

O título é "House of Leaves", e o autor é Mark Z. Danielewski. Tu provavelmente nunca ouviu falar de um nem outro. Eu também não tinha, até que o Mojo me comentou por ICQ sobre um livro de terror bizarro, que estava sendo comentado na internet como uma das obras mais inventivas e assustadoras surgidas nos últimos anos. Fazendo uma pesquisa, descobri que de fato havia um grande hype "underground" a respeito de "House of Leaves". Que era um livro capaz de provocar terror profundo no leitor. Que era uma espécie de versão literária do que foi "A Bruxa de Blair" no cinema. Que era a estréia do autor, que levou nada menos que dez anos para concluir a obra. E que havia uma boa dose de discussão sobre vários aspectos do livro, entre eles a veracidade ou não de certos elementos da narrativa, principalmente do documentário "The Five and a Half Minute Hallway", que faz parte da história. Foi o suficiente para encomendar o livro na Amazon (naqueles dias a cotação do dólar ainda permitia essas extravagâncias).

Pra acabar com a curiosidade, falemos logo do que trata o livro. A história é a seguinte: Johnny Truant, um tatuador chinelão, encontra um manuscrito no apartamento de um velho chamado Zampanò, que morreu há pouco tempo. O manuscrito é uma espécie de análise pseudo-acadêmica sobre um documentário cult chamado "The Navidson Record". O documentário foi filmado por um famoso fotojornalista (Navidson), e retrata sua fantástica experiência numa casa para a qual se mudou com a família, e que de cara revela uma característica muito estranha: é sutilmente maior por dentro do que por fora. Fascinado, Truant leva o manuscrito para casa e decide que vai lê-lo e editá-lo para ser publicado. Conforme avança na leitura, contudo, coisas estranhas começam a acontecer com ele. Desmaios, pânico, perda de lucidez. Detalhe: Zampanò, o velho morto que escreveu a análise sobre o documentário, era cego.

Acompanhou até aqui? Bom, "House of Leaves", o livro em si, é o texto final editado por Johhny Truant, o tatuator. A estrutura do livro, portanto, tem três níveis: é a história da gradual loucura de um tatuador vagabundo que edita um manuscrito de autoria de um velho morto que fala sobre um documentário, "The Navidson Record", que por sua vez fala sobre a arrepiante história do fotojornalista Navidson na sua estranha casa. Além desses três níveis, há um quarto: os Editores do livro, que publicaram o manuscrito editado por Johhny Truant, também fazem comentários, em notas de rodapé (mais sobre elas a seguir).

Sigamos: o livro apresenta essa história toda como sendo real. Zampanò é creditado na folha de rosto como autor, e Johnny Traunt como editor da obra. Os documentários "The Five and a Half Minute Hallway" e "The Navidson Record" são apresentados como verdadeiros, e inclusive há dados extensivos sobre eles, além de depoimentos de personalidades reais, como Stanley Kubrick, Steven Spielberg e Camille Paglia. Mais: há uma profusão insana de notas de rodapé no livro. Na verdade, ficamos sabendo da progressiva loucura de Johnny Truant por notas de rodapé em que comenta o que está se passando com ele enquanto edita o manuscrito, e essas notas crescem ao ponto de ocuparem páginas e páginas inteiras. As notas de rodapé também remetem o tempo todo a obras, teses, filmes e entrevistas, de um modo que é impossível saber quais delas remetem a coisas reais, e quais são pura invenção do autor. Dessa maneira, o livro consegue criar uma confusão profunda sobre o que é real e o que é imaginação nas mais de 700 (sim, setecentas) páginas de "House of Leaves".

Saibam disso: depois de ler "House of Leaves", eu fui correndo pra internet fazer uma busca no Google sobre o documentário "The Navidson Record". Eu SABIA que o documentário era inventado, mas o manuscrito de Zampanò descreve e analisa cada plano do filme em tal detalhe, e as ligações com depoimentos e estudos de pessoas que são (ou não?) reais são tão elaboradas e numerosas, que acaba provocando uma OBSESSÃO em TER CERTEZA que o documentário de fato não existe. O autor consegue nos fazer ter vontade de que o filme exista, para poder assisti-lo.

Isso porque a história do fotógrafo dentro da sua casa "assombrada" (a história mostrada pelo documentário, que por sua vez é descrito e analisado minuciosamente no manuscrito de Zampanò, que por sua vez é editado por Johnny Truant, que por sua vez enlouquece ao fazê-lo) é, sem dúvida, a melhor parte do livro. Navidson, com sua esposa Karen e os filhos Chad e Daisy, mudam-se para uma nova casa. Quando começam a fazer medições para realizar reformas e instalar móveis, descobrem coisas esquisitas. As medidas do interior da casa são ligeiramente maiores do que as do exterior. Com o tempo (e sempre filmando tudo), eles descobrem que a casa é um verdadeiro festival mutante de impossibilidades físicas. Um estreito corredor surge de um dia pro outro, ligando dois pontos próximos da casa. No entanto, Navidson leva cinco minutos para percorrê-lo de ponta a ponta. O verdadeiro terror se inicia quando um dos filhos de Navidson é "engolido" pela casa, e uma passagem surge em uma parede, dando acesso a um labirinto de proporções inconcebíveis, totalmente desprovido de luz, um fosso incomensurável de escuridão, do qual surge de tempos em tempos um grunhido monstruoso. Com ajuda de um amigo, Navidson empreende cinco tentativas de exploração da passagem, cada uma delas levando a novos limites e terrores, até uma conclusão de tirar o fôlego.

Fascinante? Basta? Mas não é tudo. Somados a essa estrutura complexa, o autor recheou o livro de informações técnicas, truques e experimentalismos gráficos: símbolos, fórmulas matemáticas, notas de rodapé gigantes e não-confiáveis, partituras musicais, ilustrações, enumerações quilométricas correndo pelas margens, texto invertido e na diagonal, páginas vazias ou quase vazias, páginas saturadas de texto, frases soltas em posições bizarras, e muito mais.

Tudo isso faz de "House of Leaves", pelo menos, um dos livros mais originais que tu vai ver na tua vida. E, no que se refere à aventura de Navidson pela sua casa impossível, é um livro realmente assustador, capaz de causar alguns calafrios. E isso o autor consegue porque destrói habilmente uma das nossas certezas racionais mais estimadas: a noção de espaço e das dimensões, algo em que aprendemos a confiar desde que nascemos. E se de uma hora pra outra essas percepções deixassem de fazer sentido, e se voltassem contra nós de maneira ameaçadora? O autor chega a usar um capítulo inteiro para descrever as propriedades física do eco, apenas para terminar com uma curta cena onde Navidson vê sua filha gritar em uma sala e sua voz ecoa, quando as dimensões reduzidas do recinto tornariam qualquer eco fisicamente impossível. Não sou uma pessoa impressionável, mas ler este livro de madrugada e levantar depois para ir buscar um copo d'água na cozinha foi uma experiência um tanto enervante, devo admitir.

Ao mesmo tempo, "House of Leaves" tem problemas. O principal deles é a narrativa em primeira pessoa de Johhny Truant, o tatuador que enlouquece. O personagem é fraco, e o estilo do texto parece ser o mesmo dos mais ilegíveis blogs confessionais. E, no entanto, a história de Johhny se arrasta por páginas e páginas, MUITAS páginas, do início ao fim do livro, sem acrescentar nada, e pior, prejudicando a fruição da análise de "The Navidson Record", a história de Navidson e seu hipnótico documentário. Há algumas incoerências estruturais ao longo do livro também. E, finalmente, fica uma sensação de que, além de sua coragem e perseverança em escrever um livro como esse, Danielewski passou um pouco dos limites, saturando DEMAIS sua obra de pirotecnia pós-moderna. Os extensos apêndices do livro trazem poesias de Zampanò, correspondência de Johnny Truant com a sua mãe louca, e dezenas de arestas e gorduras dispensáveis (eu li tudo, apesar disso). Há, ainda assim, um tom geral de ironia com os cacoetes pós-modernos, que se por um lado redime o livro de seus excessos, por outro prejudica a tensão que o texto provoca.

Escrevo sobre este livro consciente de que poucos leitores da FRAUDE terão condições de lê-lo. É em inglês, precisa ser importado etc etc. Mas sempre me dirijo, prioritariamente, àqueles leitores que gostam de literatura e de livros a ponto de buscá-los e encomendá-los onde for preciso, caso fiquem intrigados. Porque sabe cumé, ler é foda.

Um comentário:

anna v. disse...

Que interessante, nunca tinha ouvido falar. Parece mesmo ser fascinante. Fui olhar agora na Amazon, vi que o livro ocupa hoje a posição #2244, o que para uma edição de 2000 é fantástico.
Mas a primeira coisa que me veio à cabeça lendo o texto sobre o livro é que Zampanò é o personagem do Anthony Quinn em La Strada do Fellini. Quais serão as subleituras disso?