quinta-feira, setembro 01, 2011

Day 23: The book you’ve read the most times



Repetidas vezes me defrontava com o aguerrido autoritarismo da escola encarnado no líder juvenil Shalhoub. Quando nossa classe foi obrigada a assistir a um jogo de futebol na escola, mas tivemos permissão para usar nossas próprias roupas, nossa aparência suja e desleixada despertou o escárnio dos rapazes da Sexta Superior, ainda vestidos garbosamente em seus vistosos uniformes oficiais da escola. Shalhoub caminhava junto à linha do campo, como uma espécie de monarca inspecionando uma guarda de honra lamentavelmente andrajosa, com seu rosto mal escondendo o fastio e a indiferença que seu andar desdenhoso irradiava. Com um enorme cravo branco na lapela, elegantes sapatos pretos lustrosos e gravata de listras brilhantes, ele era a própria imagem do arrogante líder juvenil. Então Hamdollah cacarejou bem alto: "Puxa, que bela figura você faz, capitão Shalhoub", diante do que o ultrajado Shalhoub se deteve e acenou para que Hamdollah e eu saíssemos do campo e o acompanhássemos. Um ato de lesa-majestade havia sido cometido.

Ele nos fez marchar até a sua sala, [...] e depois de me dar dois tapas começou a torcer o braço do pobre Hamdollah por trás das costas. À medida que a pressão e a dor aumentavam, o estudante bem mais jovem gemia queixosamente, com o braço prestes a quebrar. "Por que você está fazendo isso, capitão?", ao que Shalhoub respondeu em seu inglês impecável e fluente: "Porque, para falar a verdade, gosto disso". O braço de Hamdollah não quebrou, e Shalhoub ficou entediado com seu cansativo passatempo. "De volta ao campo de futebol", comandou, "e que eu não ouça mais nenhuma palavra de vocês."

Não me lembro de tê-lo visto outra vez desde então, a não ser a certa distância, durante o último dia de aula [...]. Só voltei a ter notícia de Shalhoub uma década depois, quando ele se tornou Omar Sharif, marido de Faten Hamama e astro de cinema cuja estréia americana, em 1962, foi em Lawrence da Arábia, de David Lean.

[...]

Hoje me parece inexplicável que, tendo dominado nossas vidas ao longo de gerações, o problema da Palestina e de sua trágica perda [...] pudessem ser em tão grande medida sufocado por meus pais, omitido de suas discussões e mesmo de seus comentários.

[...] Meu pai e nós, seus filhos, estávamos todos protegidos da política da Palestina por nossos talismânicos passaportes norte-americanos, graças aos quais passávamos pelos funcionários da alfândega e de imigração com o que parecia ser uma facilidade risível, comparada com as dificuldades enfrentadas pelos menos privilegiados e menos afortunados naqueles anos de guerra e pós-guerra. Minha mãe, porém, não tinha um passaporte norte-americano.

Depois da queda da Palestina, meu pai empenhou-se seriamente - até o fim da vida - em tentar obter algum documento norte-americano para minha mãe, mas não conseguiu. Como sua viúva, ela tentou até o fim e também fracassou. Restrita a um passaporte palestino logo substituído por um laissez-passer, minha mãe viajava conosco como um empecilho levemente cômico.

Meu pai contava rotineiramente a história de como o documento dela era colocado embaixo da nossa pilha de vistosos passaportes verdes dos Estados Unidos, na esperança vã de que o funcionário da imigração a deixasse passar como um de nós. Isso nunca acontecia. Havia sempre a entrada em cena de um agente mais graduado que, com ar circunspecto e voz grave, chamava meus pais de lado para explicações [...]. Quando finalmente passávamos, o significado da anômala existência dela, representada por um documento embaraçoso, nunca era explicada a mim como a conseqüência de uma dilacerante experiência coletiva de expropriação.

[...] A ironia da busca infrutífera de minha mãe por cidadania é que depois de 1956, mediante a intervenção do embaixador do Líbano no Egito, ela pediu com sucesso a cidadania libanesa, e até sua morte, em 1990, viajou com um passaporte libanês, no qual, misteriosamente, seu local de nascimento foi trocado de Nazaré para o Cairo. [...] Tudo foi bem até o final dos anos 70, quase uma década depois da morte de meu pai, quando ser portadora de um passaporte libanês implicou para ela grandes dificuldades em conseguir vistos para a Europa e para os Estados Unidos e em passar por barreiras de imigração: ser libanês havia de repente se tornado sinônimo de ter tendência para o terrorismo, e assim minha mãe obstinadamente orgulhosa sentiu-se de novo estigmatizada. Mais uma vez fizemos investigações a respeito de cidadania - afinal, como viúva de um veterano da Primeira Guerra Mundial e mãe de cinco cidadãos, ela parecia plenamente digna da honraria - e mais uma vez disseram-lhe que teria de morar nos Estados Unidos. E de novo ela recusou, preferindo os rigores da vida em Beirute sem telefone, luz elétrica e água, ao conforto de Nova York ou Washington. Então foi surpreendida pelo retorno do seu câncer de mama [...]

Ela sabia talvez que seu fim estava próximo [...]. Comprou para si um condomínio [...] e - com seu visto de visitante - foi ficando por períodos cada vez mais longos de tempo, consultando com regularidade seu médico [...]. Um desses vistos expirou na mesma época que ela perdeu a consciência [...], e minha irmã Grace, que estava morando com ela e cuidando altruisticamente de sua saúde, viu-se envolvida em interrogatórios sobre deportação enquanto minha mãe se aproximava de seus últimos dias. O caso acabou sendo encerrado por um juiz irado que passou uma descompostura no advogado do Serviço de Imigração e Naturalização por tentar deportar uma mulher de mais de setenta anos em estado de coma.

Fora do lugar - Memórias
Edward Said - Tradução de José Geraldo Couto
Companhia das Letras, 2004


Mora na minha mesa de cabeceira, de onde é tirado ao menos três vezes ao mês. Estas são as minhas passagens preferidas.

4 comentários:

Juliana disse...

ontem, eu tava num sebo e dei de cara com 3 exemplares do seu favorito. Achei que era um sinal e trouxe um deles pra casa. =)

Li só as duas primeiras páginas. Por enquanto, ele só vai morar na minha estante. hehehehe

Rita disse...

Edward Said, pra mim, é Orientalism. Um autor que vivo me prometendo reler. Memórias? Nossa, quero demais!

Abraços
Rita

Raquel (NY) disse...

Suzana, estou adorando suas escolhas. Esse meme esta dando desfalque na minha conta bancaria e muitas alegrias para os vendedores de livros usados. Mal posso esperar pela chegada desse livro.

Renata Lins disse...

Gente, preciso demais ler isso. Vou procurar!