segunda-feira, agosto 15, 2011

Day 6: A book by your favorite author



Sob as muralhas vermelhas de Paris perfilava-se o exército da França. Carlos Magno ia passar em revista os paladinos. Encontravam-se ali havia mais de três horas; fazia calor, era uma tarde de começo de verão, meio encoberta, nebulosa; quem usava armadura fervia como se estivesse em panelas em fogo baixo. E provável que, naquela fila imóvel de cavaleiros, alguém já houvesse perdido os sentidos ou cochilasse, mas a armadura os mantinha empertigados na sela de modo uniforme.

De repente, três agudos de corneta: as plumas dos penachos agitaram-se pelo ar parado como depois de uma rajada de vento, e logo silenciou aquela espécie de rumor do mar que se ouvira até então, e era, deu para sentir, um ressoar das gargantas metálicas dos elmos. Finalmente, vislumbraram-no avançando lá do fundo, Carlos Magno, num cavalo que parecia maior que o natural, com a barba no peito, as mãos no arção da sela. Reina e guerreia, guerreia e reina, faz e desfaz, parecia um tanto envelhecido, desde a última vez que aqueles guerreiros o tinham visto.Parava o cavalo diante de cada oficial e virava-se para examiná-lo de alto a baixo.

— E quem é você, paladino da França?
— Salomon da Bretanha, sire! — respondia o militar a plenos pulmões, erguendo a viseira e mostrando o rosto afogueado; e acrescentava alguma informação prática, do tipo:
— Cinco mil cavaleiros, três mil e quinhentos soldados de infantaria, mil e oitocentos ajudantes, cinco anos de campanhas.
— Mão firme com os bretões, paladino! — dizia Carlos, e, toc-toc, toc-toc, aproximava-se de outro chefe-de-esquadrão.
— E-quem-é-você, paladino da França? — recomeçava.
— Ulivieri de Viena, sire! — escandiam os lábios assim que a grade do elmo se erguia. E direto:
— Três mil cavaleiros escolhidos, tropa de sete mil homens, vinte máquinas de assédio. Vencedor do pagão Fierabraccia, graças a Deus e para maior glória de Carlos, rei dos francos!
— Muito bem, bravo vienense — dizia Carlos Magno; e aos oficiais do séquito:
— Muito magrinhos aqueles cavalos, aumentem-lhes a ração. — E seguia adiante:
— E-quem-é-você, paladino da França? — repetia, sempre com a mesma cadência: "Tata-tatatai-tata-tata-tatata...".
— Bernardo de Montpellier, sire! Vencedor de Brunamonte e Galiferno.
— Linda cidade, Montpellier! Cidade das belas mulheres! — E dirigindo-se ao séquito:
— Vamos tratar de promovê-lo. — Todas coisas que, ditas pelo rei, dão prazer, mas eram sempre as mesmas frases, há tantos anos.
— E-quem-é-você, com esse brasão que me é familiar? — Conhecia a todos pela arma que traziam no escudo, sem que dissessem nada, mas o costume impunha que fossem eles a revelar o nome e o rosto. Se fosse de outro modo, alguém, tendo coisa melhor para fazer do que participar da revista, poderia mandar para lá sua armadura com outro dentro.
— Alardo de Dordona, do duque Amone...
— Força, Alardo, lembranças ao papai — e assim por diante. "Tata-tatatai-tata-tata-tatata..."
— Gualfré de Mongioja! Oito mil cavaleiros exceto os mortos! Ondulavam os penachos. "Uggeri Dinamarquês! Namo da Baviera! Palmerino da Inglaterra!"

Caía a noite. Os rostos, entre o bocal e a gola, já não se distinguiam muito bem. Cada palavra, cada gesto era perfeitamente previsível, como tudo naquela guerra que durava tantos anos, cada embate, cada duelo, conduzido sempre conforme as mesmas regras, de tal modo que se sabia na véspera quem havia de ganhar, perder, tornar-se herói, velhaco, quem acabaria com as tripas de fora e quem se safaria com uma queda do cavalo e a bunda no chão. Sobre as couraças, durante a noite, à luz das tochas, os ferreiros martelavam sempre as mesmas amassaduras.

— E você? — O rei chegara à frente de um cavaleiro com a armadura toda branca; só uma tirinha negra fazia a volta pelas bordas; no mais era alva, bem conservada, sem um risco, bem-acabada em todas as juntas, encimada no elmo por um penacho de sabe-se lá que raça de galo oriental, cambiante em cada nuance do arco-íris. No escudo, exibia-se um brasão entre duas fímbrias de um amplo manto drapejado, e dentro do manto abriam-se outros dois panejamentos tendo no meio um brasão menor, que continha mais um brasão amantado ainda menor. Com desenho sempre mais delicado representava-se uma seqüência de mantos que se entreabriam um dentro do outro, e no meio devia estar sabe-se lá o quê, mas não se conseguia discernir, tão miúdo se tornava o desenho.
— E você aí, que se mantém tão limpo... — disse Carlos Magno, que, quanto mais durava a guerra, menos respeito pela limpeza encontrava nos paladinos.
— Eu sou — a voz emergia metálica do interior do elmo fechado, como se fosse não uma garganta mas a própria chapa da armadura a vibrar, e com um leve eco — Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildiverni e dos Altri de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selimpia Citeriore e Fez!
— Aaah... — fez Carlos Magno, e do lábio inferior, alongado para a frente, escapou-lhe também um pequeno silvo, como quem diz: "Se tivesse de lembrar o nome de todos estaria frito!". Mas logo franziu as sobrancelhas.
— E por que não levanta a celada e mostra o rosto?
O cavaleiro não fez nenhum gesto; sua direita enluvada com uma manopla férrea e bem encaixada cerrou-se mais ainda ao arção da sela, enquanto o outro braço, que regia o escudo, pareceu ser sacudido por um arrepio.
— Falo com o senhor, ei, paladino! — insistiu Carlos Magno. — Como é que não mostra o rosto para o seu rei?
A voz saiu límpida da barbela.
— Porque não existo, sire.
— Faltava esta! — exclamou o imperador. — Agora temos na tropa até um cavaleiro que não existe! Deixe-nos ver melhor.
Agilulfo pareceu hesitar um momento, depois com mão firme e lenta ergueu a viseira. Vazio o elmo. Na armadura branca com penacho iridescente não havia ninguém.
— Ora, ora! Cada uma que se vê! — disse Carlos Magno. — E como é que está servindo, se não existe?
— Com força de vontade — respondeu Agilulfo — e fé em nossa santa causa!
— Certo, muito certo, bem explicado, é assim que se cumpre o próprio dever. Bom, para alguém que não existe está em excelente forma!

O cavaleiro inexistente
Ítalo Calvino - tradução de Nilson Moulin
Companhia das Letras, 1999

Um comentário:

Beatriz disse...

Esse também tá na minha lista!