terça-feira, agosto 30, 2005

Como todos os dias

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Um calor insuportável, eu tendo que achar tudo normal, do ataque histérico da chefe aos peixes do aquário do escritório que estavam apodrecendo junto com a água - a ordem era cortar gastos, e a dona da agência resolveu que pagar R$ 25 por mês para limpar o aquário podia levá-la à falência. Eu, como sou cretina, idiota e burra, paguei R$ 80 para que toda a água do aquário fosse trocada, os peixes limpos, a areia do fundo trocada e as plantas, desencardidas. E agora, como se não bastasse o nada que tenho para fazer, ainda estou procurando uma alma caridosa que dê um lar para aquela meia dúzia de oito peixes.
Chegamos em casa, Zé Colméia virou três copos de suco de uma vez e apagou. Catatau, como sempre, pediu o lanche da noite - e não importa que ela tenha jantado feito soldado em acampamento militar na Amazônia 45 minutos antes: o biscoitinho é sagrado. Dei banho nela, arrastei Zé Colméia dormindo para a banheira e, depois que ambas, fresquinhas e perfumadas, já estavam deitadas, Catatau passou as mãozinhas do meu pescoço, onde já começaram a aparecer as manchas roxas, e soltou num fiapinho de voz:
- Deixa que eu curo, mamãe. Não vai mais doer, eu prometo. Só não pode chorar mais, tá? Porque eu te amo dessssse tamanho!
E me abraçou, naquele abraço gordinho só dela. E eu chorei, claro. E, olhando aquelas mãos pequenas e rechonchudas, pensei no menininho holandês e seu dedinho tapando o vazamento de um gigantesco dique.

...

E então nos falamos na hora do almoço. Ele irritado, eu falei, expliquei, disse que não queria brigar, mas que R$ 300 para duas crianças não dá. Eu não dou conta. Minha saúde está cada vez menor, meu cansaço cada vez maior. E eu chorei, e pedi por favor você já foi o meu melhor amigo. E então eu vi. Vi que estava conversando com uma parede cega e surda. Nada ia adiantar. Então eu respirei fundo e desliguei o telefone. Subi e voltei a trabalhar.
Quando você conhece realmente a natureza das correntes, a profundidade do mar e quão longe ou perto a praia está, então ganha confiança dos seus limites e sabe se pode esperar ajuda ou não, caso algo dê errado.
Eu estou no meio do oceano, sozinha. E se eu não nadar, vou me afogar. O truque é ritmar as braçadas e pensar em coisas boas, no que de bom vai acontecer quando essa tormenta acabar. Porque ela não vai durar indefinidamente. E eu estou lutando desesperadamente comigo mesma para não me entregar.

segunda-feira, agosto 29, 2005

...

Mas, às vezes, que gostaria mesmo de me deitar, sentir calor mas, ao mesmo tempo, o escuro descer sobre mim como um lençol frio. Dormir e não acordar mais.

...

A todo mundo que me escreveu, e em especial a essa flor-de-lis tão perfumada, o meu carinho e o meu muito obrigada. Mas eu sou vaso ruim, que não quebra assim tão fácil. Eu tenho duas filhas para criar e não posso perder meu tempo ficando deprimida. Porque eu sei que vou sair dessa. Eu sempre consigo.
Sempre.

domingo, agosto 28, 2005

Memento mori

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Repentinamente, num certo verão, acreditei poder rever um temporal a que havia assistido dezoito anos antes. Pensar em poder reviver o Irrepetível é uma idéia estúpida, ainda que as circunstâncias externas e internas, parecendo-nos idênticas, corroborem a nossa ilusão. Daquele acontecimento longínquo, de fato, repetiam-se os mesmos elementos constitutivos: o mesmo ponto de observação (a janela de uma pousada isolada), o mesmo lugar observado (uma paisagem de linhas agrestes), o mesmo ar carregado de eletricidade que se transmitia ao corpo e aos pensamentos, a mesma lua que corria como uma louca entre as nuvens de tinta preta.
Escancarei a janela, apoiei-me ao parapeito e fiquei ali numa paciente espera. Em tais circunstâncias é preciso acender um cigarro, ou uma vela, e pensar nos próprios mortos, como eu tinha feito muitos anos antes. Fiz assim, mas o temporal não veio, deixando a paisagem imóvel. Desencadeou-se, contudo, na minha cabeça à maneira de uma cefaléia cósmica que incha as marés de sangue no crânio [...] Como vicário daquele temporal frustrado nasceu "Casta Diva*".
[...] No início de setembro, Ricardo Cruz-Filipe convidou-me a ir a sua casa de Lisboa para ver seus últimos quadros. Há tempo tinha prometido a ele um texto sobre a sua pintura e nunca o tinha escrito. Naquele dia, olhando alguns quadros [...], percebi claramente que aquele texto o tinha escrito. Era o que aqui intitulo "Casta Diva". E compreendi também que os loucos não são os feiticeiros que dançam para que o temporal caia, mas o falso meteorologista que anuncia que o temporal previsto para hoje poderá acontecer só daqui a dois dias.
E por quê? Simplesmente porque aquele meteorologista quer que tudo aconteça por ordem e por lógica, e que a manhã chegue para coroar a noite serena passada nos braços de seu Morfeu. E portanto requiescere in pace (Descanse em paz!), para retornar a sua rotina graças à qual se sabe que a vida está toda aqui, e nunca em outro lugar.

Antonio Tabucchi, "Está ficando tarde demais"
Editora Rocco, 2004

* Nome de uma das cartas presente a esse romance epistolar.

...

E chorar não me alivia mais. Só me dá dor de cabeça.
Talvez eu não devesse ter parado de fumar agora. Hoje faz uma semana que parei. Meu organismo não sente falta da nicotina. Minha cabeça, sim.
Talvez eu não devesse ter pedido o divórcio. Ou ficado com a guarda das meninas. Ou quem sabe deveria ter desistido de tudo e ido para a casa dos meus pais.
Sempre que penso em minha situação hoje me vejo em cima de uma parelha de cavalos, desembestados. Eu lutando para segurar as rédeas e fazê-los parar. Ou tentando me segurar num tronco e manter a cabeça para fora d'água, num mar revolto.
E aí eu me pego pensando se não é melhor esperar os cavalos se cansarem e pararem por si só. Ou simplesmente me deixar afogar - não dizem que é doloroso só no início, mas que depois é uma sensação única, doce, mágica?
A verdade é que estou cansada de lutar. Porque já nem sei porque faço isso.

Madrugada

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Ontem à noite, sozinha em casa, começou a bater aquela sensação muito esquisita, que tem me visitado cada vez com mais frequência. Liguei para o CVV - coisa que me pai sempre me disse para NÃO fazer, porque, segundo ele, "você ocupa a linha e tem gente que precisa mais do que você, que fica com essas frescuras". Quem atendeu foi uma senhora, muito simpática. Mas, sei lá, a conversa não ajuda muito. Porque parece uma fila de clichês, e eu realmente não sei o que esperava ouvir. Agradeci, desliguei, e chorei muito. E comecei a pensar nas pessoas, em quem conheci nos últimos meses, em quem se afastou de mim e de quem me afastei. Retrocedi 10 anos e imaginei onde eu estava. Estava ainda lambendo as fotos que eu tirei da minha viagem pela Europa. E como um dos lugares que mais me fascinou foi o Castelo de Chambor que, dizem, demorou anos para ficar pronto e onde o rei da França se hospedou um dia, apenas. Sua escada projetada para que quem descesse não se encontrasse com quem subisse (exigência para que as amantes do rei não se engalfinhassem entre um lance e outro). E mais Paris, Bordeaux, Roma, Milão, Assis, Pompéia, Barcelona, Madri, Sevilha, Granada, Heidelberg, Frankfurt, Lucena, Mônaco e tantas outras cidades por onde passei. A alma limpa, sem pesos, sem responsabilidades, aberta a um mundo ainda por descobrir.
Eu vivia o prazer de olhar para a frente, e não o receio de abrir os olhos pela manhã.

Descronização

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Às vezes eu tenho a impressão de que sempre chego nos lugares quando todo mundo já foi embora.

quinta-feira, agosto 25, 2005

Passo macio

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Ela está contando histórias de gatos famosos - ou "históricos", como ela os chama. O primeiro foi Bambino, o gato de Mark Twain. O próximo perfilado será o bichano do Richelieu. Se é homenagem à Teresa, a sua gata, querida, a idéia foi de gênio :o)

Única

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Amanhã Zé Colméia vai a um passeio - a turminha dela vai conhecer o Museu do Pontal, voltado para o folclore. Como fica no Recreio dos Bandeirantes, a direção da escola avisou que eles vão pela orla, vendo as praias e o que mais de bonito houver.
Amo minha cidade. E amo ainda mais a oportunidade que ela dá às minhas filhas de se encantarem com a cidade linda em que vivem, a despeito de mazelas, problemas, preocupações e violência que ela tem. Eu sei que aprenderia a viver em outro lugar do mundo, se fosse preciso. Mas jamais deixaria de sentir falta da cidade onde nasci.

Dois lados

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Hoje me parece inexplicável que, tendo dominado nossas vidas ao longo de gerações, o problema da Palestina e de sua trágica perda [...] pudesse ser em tão grande medida sufocado por meus pais, omitido de suas discussões e mesmo de seus comentários. [...] Meu pai e nós, seus filhos, estávamos todos protegidos da política da Palestina por nossos talismânicos passaportes norte-americanos, graças aos quais passávamos pelos funcionários da alfândega e de imigração com o que parecia ser uma facilidade risível, comparada com as dificuldades enfrentadas pelos menos privilegiados e menos afortunados naqueles anos de guerra e pós-guerra. Minha mãe, porém, não tinha um passaporte norte-americano.
Depois da queda da Palestina, meu pai empenhou-se seriamente - até o fim da vida - em tentar obter algum documento norte-americano para minha mãe, mas não conseguiu. Como sua viúva, ela tentou até o fim e também fracassou. Restrita a um passaporte palestino logo substituído por um laissez-passer, minha mãe viajava conosco como um empecilho levemente cômico.
Meu pai contava rotineiramente a história de como o documento dela era colocado embaixo da nossa pilha de vistosos passaportes verdes dos Estados Unidos, na esperança vã de que o funcionário da imigração a deixasse passar como um de nós. Isso nunca acontecia. Havia sempre a entrada em cena de um agente mais graduado que, com ar circunspecto e voz grave, chamava meus pais de lado para explicações [...]. Quando finalmente passávamos, o significado da anômala existência dela, representada por um documento embaraçoso, nunca era explicada a mim como a conseqüência de uma dilacerante experiência coletiva de expropriação.

Edward Said*, "Fora do lugar - Memórias"
Companhia das Letras, 2004

* Nascido em Jerusalém em 1935, Edward W. Said viu seu país, a Palestina, desaparecer treze anos depois, substituído pelo Estado de Israel. Desde então, viveu no Egito, no Líbano e nos Estados Unidos, sempre carregando a condição de apátrida e a sensação de estar "fora do lugar". De família cristã em nações de maioria muçulmana, palestino com cidadania norte-americana, alfabetizado simultaneamente em inglês e árabe, Said relata o doloroso processo de construção de sua identidade num mundo em convulsão.

quarta-feira, agosto 24, 2005

...

O que ontem era visceral hoje é somente... patético.
Uma pena.

Nebulosa de Órion

Há três semanas:

- Você passa sempre as férias aqui?
- Não, estou aqui a trabalho.
- Ah... Você veio com o pessoal do sul?
- Não, eu atendo a rede [...] de Hotéis.
- Ah, sim.

Hoje na hora do almoço:

- Nossa, nos encontramos de novo! [blá blá blá] E como vão suas filhas?
- Estão ótimas, obrigada.
- Não sei como o seu marido deixa você passar quatro dias num lugar como aquele.
- Sou divorciada.
- ... Hum, bem, se eu soubesse disso quando a gente estava lá...!
- Você é casado.
- E isso é algum problema?

Alguém pode me explicar o que foi isso? Surtei eu, surtou o mundo ou definitivamente morri no século bem passado e todo mundo agora vive ao ponto?

terça-feira, agosto 23, 2005

Notícias do mundo interior*

You are invited to anonymously contribute your secrets to PostSecret. Each secret can be a regret, hope, funny experience, unseen kindness, fantasy, belief, fear, betrayal, erotic desire, feeling, confession, or childhood humiliation. Reveal anything - as long as it is true and you have never shared it with anyone before.

Create your own 4-by-6-inch postcards out of any mailable material. But please only put one secret on a card. If you want to share two or more secrets, use multiple postcards. (Please do not email your secret.)

Please put your complete secret and image on one side of the postcard.

Mail your secrets to:
PostSecret
13345 Copper Ridge Rd
Germantown, Maryland
USA 20874-3454

Email questions or comments to: Frank@docdel.com


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Eu matei gente no Iraque e gostei. Agora sonho acordado com matar mais. Sou um monstro?

Acho que meu marido é gay.

Eu fiz uma bagunça na casa dos meus pais quando eles viajaram. Era para que minha mãe achasse que eu tinha amigos.

Quando eu tinha três anos, meu pai gostava muito que eu escovasse seus cabelos ruivos. Um dia, ele pediu e eu disse que não queria. Aí ele foi trabalhar e morreu. Hoje tenho 65 anos e às vezes acho que foi minha culpa.

Desculpe. Nós éramos jovens. Lembro de tudo e me arrependo todos os dias.

Não gosto quando meu marido olha em meus olhos durante o sexo. Ele pode ver meu segredo.

Às vezes ainda penso como seria a vida se eu tivesse coragem de contar a ela.

Meu vizinho estava fazendo muito barulho. Então aumentei em muito o volume do som. Ele veio e deu um esporro no meu filho adolescente. Eu só fiquei lá e não defendi meu filho. Eu o amo. Me sinto mal por ter feito isso. Não consigo parar de chorar conforme escrevo. Tenho 60 anos e nunca me perdoei. Nunca conversei com meu filho sobre isso.

Eu sei que ele não me ama mais.


São textos fascinantes, menos pelo que falam, mais pelo que não falam. Os cartões postais que acompanham cada pequena confissão são uma beleza. (Pedro Doria, Weblog, NoMínimo)

* Pra você, que já me perguntou sobre um segredo meu - e deve ter se decepcionado quando eu disse que queria ir onde nenhum homem jamais esteve :o)

...

A rede de hotéis pra que trabalho vai inaugurar em novembro uma nova unidade. Estalando de novo, nem entrou no site deles. Fica na França, no Vale de Savoie. É do nível de Gstaad, na Suiça. Muita grana, três pistas de esqui, chiquérrimo. E, se tiver grupo de visitas, eu vou ter que acompanhar. Mas pelo menos tiveram, dessa vez, a delicadeza de perguntar se eu QUERO ir.
Bom, não quero, não. Quero ficar em casa vendo TV.
Parece que, quando mais eu subo, mais eu afundo.

Vida de pedreiro

É, tirei do ar. Apaguei. Recebi seis telefonemas e dois e-mails aflitos de pessoas querendo saber como eu estava. Uma delas, que sabe o quão barra-pesada é ter depressão (e não "frescura", como tem gente que acha que é) ficou mais do que preocupada. Fica não, Flor.
Antes de eu me separar, eram três salários e dois frilas - divididos entre eu e meu ex-marido. Agora, é só o meu salário e a pensão, pequena, que as meninas recebem. Não posso me dar ao luxo de ficar deprimida. Aliás, um amigo meu dizia que "peão de obra fica deprimido, levanta e vai trabalhar".
Sempre fiquei imaginando quantos não se jogam lá de cima no fim do expediente. Mas isso é outra história.

sábado, agosto 20, 2005

Da hora

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Quando eu morri, a quinhentos anos atrás, já existiam vermes e políticos. Os dois são o assunto deste livro que o leitor segura em suas mãos. Lave-as depois. [...] Vivi por 68 anos e entre as muitas obras que deixei, ficaram um tratado político e uma comédia. Este livro tem um pouco disso e um tanto daquilo. Os vermes que o escreveram fizeram uma comédia política sobre os vermes que fazem da política, comédia.
Nicolau Maquiavel (psicografado)

Sei que os bons modos me obrigavam a ajoelhar aos pés de meu salvador e lhe agradecer mil vezes por ter-me salvo a vida. Mas o pavor era maior que a gratidão e, em vez de obrigados, só o que saiu da minha boca eram perguntas:
"Quem é você?, quem sou eu?, onde estamos?, de onde virmos?, qual o sentido da vida, onde tem comida?"
"Calma, uma coisa de cada vez."
Respirei fundo e comecei a falar o mais pausadamente possível:
"Eu estava numa planície verdejante..."
"Era uma folha de alface."
"Havia uma leve brisa..."
"O ar-condicionado do avião."
"E doces melodias ecoavam..."
"Música ambiente."
"Então fui jogado numa caverna..."
"A boca."
"Caí sobre algo vermelho e pegajoso..."
"A língua."
"Pedras amareladas quase me esmagaram..."
"Os dentes."
"Despenquei por um poço sem fim..."
"O esôfago."
"Caí dentro de um lago..."
"O estômago."
"E agora estou aqui..."
"O pâncreas."
Há de se perdoar minha ignorância. Naquele tempo eu era apenas um recém-nascido e não o velho de hoje, já passado dos meus 20 dias de vida. Tudo era surpresa, tudo me parecia novo e inexplicável. Eu queria entender o universo e seus seres, as luzes e suas sombras. Então fiz a pergunta que todos se fazem:
"E quem somos nós?"
"Vermes, ora essa!"
"Vermes?"
"Vermes."
"Vermes??"
"Vermes."
"Vermes???"
"Essa conversa está ficando monótona."
"Desculpe."
"Eu é que peço perdão. Não estou acostumado a receber visitas, mas não saio daqui pra nada."
"Para mim parece um ótimo lugar."
"Dizem que o pulmão é mais arejado e que no olho a vista é melhor, mas não saio daqui por nada."
"Pulmão? Olho?"
"Terei que lhe ensinar tudo, não é?"
Abanei meus cílios afirmativamente. Ele bufou:
"Pois bem, meu garoto, vou lhe fazer as honras da casa: nós vivemos dentro de um ser gigantesco, um homem. E nós, os vermes, o chamamos de Ele."
"Isso tudo é um ser vivo?"
"E dos mais vivos." [...]
"E o que Ele faz?"
"É um político."
"O que é isso?"
"Um tipo de Deus. Pelo menos é o que Ele acha."

José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, "Os vermes"
Editora Objetiva, 2000

terça-feira, agosto 16, 2005

Saudade

Uma boa amizade que foi-se, até hoje não sei o motivo.
Sabe, sinto muita falta de conversar com você.

Inferno é...

... duas cadelas no cio e um macho doido para dar uminha, sem compromisso e com total liberdade porque é vasectomizado. E nenhuma das duas está nem aí pra ele.
O inferno? Ah, não é o dele. É o meu, tentando acalmar a vizinhança ensandecida e dormir com os latidos intermitentes noite adentro.
Agora imagina o show: eu, que já não sei se sexo é animal, vegetal ou mineral, de pé na varanda às três da manhã, bêbada de sono, tentando convencer uma das duas na base do "Pelamordedeus, umazinha só" a dar para o pobre.
Na boa, Deus está de headphone de novo. Só pode ser.

Frida Kahlo

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... e Zé Colméia descobriu a beleza e a dor da pintura de Frida Kahlo. E pensou na morte, e na doença, e como tudo pode ser transformado: da agonia mais profunda à beleza mais sublime. Ligou para o pai para contar a história da menina que sofreu, mas que inventou uma amiga imaginária e povoou páginas com desenhos imaginados. Virou o livro de cabeça para baixo, as páginas de trás para a frente, da frente para trás. Dormiu agarrada ao livro. E vai levá-lo amanhã para a escola.
Edição brasileira, Cosac & Naify.

Essencial

O beijo é o abismo que separa ter prazer sozinha de subir ao céu acompanhada.

...

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Às vezes eu me sinto a última pessoa da Terra, jogando da praia dessa ilha chamada Breviário muitas garrafas com pedidos de socorro. Sem a menor esperança de que alguém responda.

domingo, agosto 14, 2005

O hoje preso ao passado

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Como toda canceriana que se preze, sou visceralmente ligada ao passado. E uma das coisas que mais me fascinam são fotos antigas. Sempre me lembro de um livro que li na faculdade, de Roland Barthes, "A câmara clara", em que ele fala de como ficou impressionado com um quadro do pequeno filho de Napoleão. Ele se deslumbrava com a idéia de que olhava os olhos que viram o grande Bonaparte.
Eu sou um pouco assim. Há aqui no Breviário uma foto chamada "Paulette e André". Fico imaginando qual o destino daquelas duas crianças, uma amizade tão risonha e alegre. Assim como penso como terá sido a vida dessas três crianças, filhas dessa imigrante, e de todos esses homens e mulheres embarcados para uma vida nova na América. Quantos foram felizes, quantos tiveram morte triste ou quantas personalidades influentes, poderosas ou famosas hoje elas geraram.
É estranho olhar pessoas que, com certeza, hoje estão mortas, mas se eternizaram na fotografia.

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Estupro

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Como em outros lugares, as coleções florentinas haviam sido enviadas para refúgios no campo.Em 1940, a antiga quinta dos Médici em Poggio a Caiano e dois outros palazzos foram requisitados a logo depois estavam cheios de grandes obras. A estátua eqüestre de bronze de oito toneladas de Cosimo I de Médici foi desmontada e, muito apropriadamente, transferida da Piazza della Signoria para os jardins de Poggio num carro puxado a quatro bois. A viagem levou dezesseis horas; em certo momento, a estrada de terra precisou ser escavada para que as orelhas do cavalo passassem debaixo de uma ponte ferroviária.
No total, outros dezoito refúgios foram criados, alguns em quintas particulares pertencentes a florentinos famosos, outros em edifícios como o oratório de San Onofrio em Dicomano, onde as principais esculturas do Bargello e do Duomo ficaram abrigadas.

Lynn H. Nicholas, "Europa saqueada - O destino dos tesouros artísticos europeus no Terceiro Reich e na Segunda Guerra Mundial"
Companhia das Letras, 1996

Há muito que eu tenho esse livro, mas só agora comecei a lê-lo. E fica-se estarrecida com a quantidade de obras que se perderam, que foram destruídas, que devem estar apodrecendo no fundo de uma mina ou no sótão de um casarão em ruínas. Há imagens dolorosas, como uma Madona de Bruges embrulhada com toalhas de renda e cortinas para ser levada pelos alemães até o mar de cinco mil sinos saqueados de toda a Europa aguardando triagem em Hamburgo.
Não achei a imagem da edição brasileira, mas subi a da edição americana (ambas são iguais) porque essa foto sempre me impressionou. Feita em 1940 por René Huyghe, então curador-chefe do Louvre, mostra uma das galerias saqueadas pelos alemães: as paredes nuas, as molduras pelo chão.

sábado, agosto 13, 2005

...

Deitada na cama, sentindo uma dor miserável, pensei muito em minhas filhas. Na vida que tenho levado, em todos os problemas e responsabilidades. Nas vezes em que, cegamente, descarreguei minha frustração, solidão e angústia em Zé Colméia, e chorei ao lembrar do olhar assustado ante a mãe que ela via transformar-se numa besta histérica na frente dela. Chorei de vergonha e remorso. Liguei para ela e perguntei: "Você me ama?" "Sim, eu te amo, mamãe" "Muito ou pouco?" "Do tamanho do céu".
Pensei no tempo que está passando, e que eu sinto que estou desperdiçando sem que eu possa fazer alguma coisa para reverter isso. Nos dias em que chego a trabalhar 18 horas para aliviar um pouco o orçamento, sempre no vermelho, sempre no negativo.
Pensei em mim mesma jovem, sorridente, me achando invencível, durona, aquela que ninguém derrubaria, com um futuro brilhante pela frente.
Pensei em como alguém se aproximará de mim, cheia de problemas, tristezas, melancolias, cheia de nós.
Pensei em como eu sempre fui só, como sempre me fechei quando as coisas apertavam e o que se ouvia era só "isso não é problema meu", pessoas em que eu confiava e que me viraram as costas, fingiram que nada estava acontecendo e se foram, sem dizer uma só palavra.
Pensei em quando essa dor vai embora, mesmo depois de eu sarar. Se é que ela um dia vai me abandonar.

Felicidade é...

Depois de uma semana infernal, de pouco sono, muito trabalho, problemas imprevistos, soluções que não chegam quando deveriam, o grand finale!
Quebrei uma costela. Só dói quando eu respiro.

quinta-feira, agosto 11, 2005

Primeiras notícias

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Hoje falei com ela: como eu disse antes, minha empregada deu à luz na madrugada de sexta para sábado. Julia veio ao mundo com 51cm e 3,150kg de muita saúde.
Seja bem-vinda :o)

C'est la vie

Eu sinceramente queria ter algo mais a dizer. O lugar em que fiquei é paradisíaco. A cozinha do restaurante, comandada por um chef francês - aliás, um terço da equipe é francesa. Os pães, feitos por um padeiro português, casado com uma argentina, que por sua vez deu à luz na Itália.
Entardeceres deslumbrantes, amanheceres de cinema. Uma praia maravilhosa, shiatsu feito ao ar livre. Dormir com o barulho do mar, acordar com a revoada de passarinhos na varanda.
E 500 pessoas que simplesmente não calaram a boca por quatro dias seguidos.
Ah, a vida...!

Máxima

Depois de passar quatro dias trabalhando que nem uma condenada, mas me sentindo a rainha da batata baroa, não consigo parar de pensar na frase que li hoje, de Simone de Beauvoir: "Cada êxito encobre uma abdicação".
No meu caso, várias.

domingo, agosto 07, 2005

Duas noites, três dias

Amanhã às dez viajo para Angra dos Reis, para acompanhar um grupo de 500 empresários num daqueles resorts da região. Só volto na quarta.
Sono. É a única coisa que consigo sentir. E cansaço. Arrumar tudo, deixar roupas separadas em sacos plásticos com identificação para o pai saber o que vestir nas meninas. Limpar a casa, fazer compras, lavar e passar toda a roupa. Fazer a minha mala, deixar escrito um roteiro da rotina das meninas e mais uma lista de recomendações, doses de remédios, deveres de casa, dias de aulas extras.
Minha empregada deu à luz ontem à noite. A nova chega na segunda e eu só vou conhecê-la pessoalmente na quarta.
Há muito que eu aprendi que, no fim, é entregar pra Deus e ir à luta.

quinta-feira, agosto 04, 2005

Lotus Organizer

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Então vamos à lista:

Viagem com 14 jornalistas vindos de todo o país, cada um achando que está indo, com tudo pago, para um lugar que TEM a OBRIGAÇÃO de lhe dar a melhor suíte do lugar (e só para ele, nada de quarto duplo!): check!

Montagem de 25 kits para a imprensa ("Ah, é sempre bom levar a mais, não? Você fez tudo bilingüe, né? Não? Mas você tem que seguir a normatização: todo o material tem que ser em inglês e em português."): check!

Montagem de PowerPoint pedido às 17h50m - quando as meninas saem às 18h30m e não há mais ninguém que possa pegá-las: check!

Digitalização de 28 matérias em 25 minutos e "Pode deixar que eu monto em casa": check!

Descoberta de que, na briga para entrar em casa, um dos cachorros arrancou, mastigou e (Deus sabe se) engoliu a Hello Kitty da mochila da Catatau - e como eu vou explicar isso para ela (ah, sim, estou pensando furiosamente: alguma idéia?): check!

Percepção que a zorra que a casa estava quando eu saí às sete da manhã continua intacta 12 horas depois, porque a empregada não foi trabalhar: check!

Conscientização moralmente plena que a empregada não vai voltar, porque senão ela vai parir entre o 47º e o 48º degraus de subida da rua até em casa: check!

Feitura de um testamen..., quer dizer, de uma lista de coisas a fazer antes do sol raiar que incluem a mala das meninas, limpar terraço e varandas, alimentar os cachorros, botar roupa para lavar e pendurar a dita, limpar (leia-se "enganar") a casa, arrumar as mochilas das meninas e... fazer o PowerPoint. Até as cinco da manhã: check!

Organização da minha ausência: a minha mala por fazer, roteiro para o pai das meninas não incendiar a casa nem vestir as meninas com roupas que nem o Exército da Salvação aceitaria até eu voltar de viagem, na terça: check!

Orientação da empregada temporária (no sábado à noite? No domingo de madrugada? A caminho do aeroporto? Por telepatia?): check!

Pagamento das contas que vencem até o dia 8, aviso às professoras que ESCREVAM o que for preciso nas agendas, fazer supermercado, compras: ração para o cachorro, presente da coleguinha que faz aniversário da escola NA SEGUNDA!, o que eu preciso para a viagem (porque acho que lavar o cabelo com detergente não vai funcionar, COMPRAR UMA MALA, GOD!): check!

Deus, me sinto fazendo um testamento.

terça-feira, agosto 02, 2005

Ensaio sobre a cegueira *

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A claridade do dia iluminava até o fundo o amplo espaço do supermercado. Quase todos os escaparates estavam tombados, não havia mais do que lixo, vidros partidos, embalagens vazias.[...] O cão das lágrimas ganiu baixinho. Tinha outra vez o pêlo eriçado. Disse a mulher do médico, Há aqui um cheiro. Sempre cheira mal, disse o médico. Não é isso, é o outro cheiro, o da putrefacção, Algum cadáver que estará por aí, Não vejo nenhum, Então será impressão tua. O cão tornou a gemer. Que tem o cão, perguntou o médico, Está nervoso. [...] Atravessaram o supermercado até à porta que dava acesso ao corredor por onde se chegaria ao armazém da cave. O cão das lágrimas seguiu-os, mas de vez em quando parava, gania a chamá-los, depois o dever obrigava-o a continuar.
Quando a mulher do médico abriu a porta, o cheiro tornou-se mais intenso. Cheira mesmo mal, disse o marido. Deixa-te ficar aqui, que eu já volto. Avançou pelo corredor, cada vez mais escuro, e o cão das lágrimas seguiu-a como se o levassem de rastos. Saturado pelo fedor da putrefacção, o ar parecia pastoso. [...] Que terá havido se passado aqui, murmurou depois, uma e outra vez, estas palavras enquanto se ia aproximando da porta metálica que dava para a cave. Confundida pela náusea, não notara antes que havia ao fundo uma claridade difusa, muito leve. Agora sabia o que era aquilo. Pequenas chamas palpitavam nos interstícios das duas portas, a da escada e a do monta-cargas. Fogo-fátuos agarrados às frinchas, estavam ali agarrados e dançavam, não se soltavam, hidrogênio fosforado resultante da decomposição. Um novo vômito retorceu-lhe o estômago, tão violento que a atirou no chão. O cão das lágrimas uivou longamente, lançou um grito que parecia não acabar mais, um lamento que ressoou no corredor como a última voz dos mortos que se encontravam na cave. [...]
Que terá sucedido, devem ter dado com a cave, precipitaram-se pela escada abaixo à procura de comida, lembro-me de como era fácil escorregar e cair daqueles degraus, e se caiu um caíram todos, provavelmente nem conseguiram chegar aonde queriam, ou conseguiram-no e com a escada obstruída não puderam voltar, Mas tu disseste que a porta estava fechada, Fecharam-na com certeza os outros cegos, transformaram a cave num enorme sepulcro. [...] O cão das lágrimas não se manifestou, o assunto não lhe dizia respeito, de alguma coisa lhe servia ter-se transformado nos últimos tempos em cão das lágrimas.

José Saramago*, Companhia das Letras, 1995