domingo, agosto 28, 2005

Memento mori

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Repentinamente, num certo verão, acreditei poder rever um temporal a que havia assistido dezoito anos antes. Pensar em poder reviver o Irrepetível é uma idéia estúpida, ainda que as circunstâncias externas e internas, parecendo-nos idênticas, corroborem a nossa ilusão. Daquele acontecimento longínquo, de fato, repetiam-se os mesmos elementos constitutivos: o mesmo ponto de observação (a janela de uma pousada isolada), o mesmo lugar observado (uma paisagem de linhas agrestes), o mesmo ar carregado de eletricidade que se transmitia ao corpo e aos pensamentos, a mesma lua que corria como uma louca entre as nuvens de tinta preta.
Escancarei a janela, apoiei-me ao parapeito e fiquei ali numa paciente espera. Em tais circunstâncias é preciso acender um cigarro, ou uma vela, e pensar nos próprios mortos, como eu tinha feito muitos anos antes. Fiz assim, mas o temporal não veio, deixando a paisagem imóvel. Desencadeou-se, contudo, na minha cabeça à maneira de uma cefaléia cósmica que incha as marés de sangue no crânio [...] Como vicário daquele temporal frustrado nasceu "Casta Diva*".
[...] No início de setembro, Ricardo Cruz-Filipe convidou-me a ir a sua casa de Lisboa para ver seus últimos quadros. Há tempo tinha prometido a ele um texto sobre a sua pintura e nunca o tinha escrito. Naquele dia, olhando alguns quadros [...], percebi claramente que aquele texto o tinha escrito. Era o que aqui intitulo "Casta Diva". E compreendi também que os loucos não são os feiticeiros que dançam para que o temporal caia, mas o falso meteorologista que anuncia que o temporal previsto para hoje poderá acontecer só daqui a dois dias.
E por quê? Simplesmente porque aquele meteorologista quer que tudo aconteça por ordem e por lógica, e que a manhã chegue para coroar a noite serena passada nos braços de seu Morfeu. E portanto requiescere in pace (Descanse em paz!), para retornar a sua rotina graças à qual se sabe que a vida está toda aqui, e nunca em outro lugar.

Antonio Tabucchi, "Está ficando tarde demais"
Editora Rocco, 2004

* Nome de uma das cartas presente a esse romance epistolar.

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