terça-feira, agosto 02, 2005
Ensaio sobre a cegueira *
A claridade do dia iluminava até o fundo o amplo espaço do supermercado. Quase todos os escaparates estavam tombados, não havia mais do que lixo, vidros partidos, embalagens vazias.[...] O cão das lágrimas ganiu baixinho. Tinha outra vez o pêlo eriçado. Disse a mulher do médico, Há aqui um cheiro. Sempre cheira mal, disse o médico. Não é isso, é o outro cheiro, o da putrefacção, Algum cadáver que estará por aí, Não vejo nenhum, Então será impressão tua. O cão tornou a gemer. Que tem o cão, perguntou o médico, Está nervoso. [...] Atravessaram o supermercado até à porta que dava acesso ao corredor por onde se chegaria ao armazém da cave. O cão das lágrimas seguiu-os, mas de vez em quando parava, gania a chamá-los, depois o dever obrigava-o a continuar.
Quando a mulher do médico abriu a porta, o cheiro tornou-se mais intenso. Cheira mesmo mal, disse o marido. Deixa-te ficar aqui, que eu já volto. Avançou pelo corredor, cada vez mais escuro, e o cão das lágrimas seguiu-a como se o levassem de rastos. Saturado pelo fedor da putrefacção, o ar parecia pastoso. [...] Que terá havido se passado aqui, murmurou depois, uma e outra vez, estas palavras enquanto se ia aproximando da porta metálica que dava para a cave. Confundida pela náusea, não notara antes que havia ao fundo uma claridade difusa, muito leve. Agora sabia o que era aquilo. Pequenas chamas palpitavam nos interstícios das duas portas, a da escada e a do monta-cargas. Fogo-fátuos agarrados às frinchas, estavam ali agarrados e dançavam, não se soltavam, hidrogênio fosforado resultante da decomposição. Um novo vômito retorceu-lhe o estômago, tão violento que a atirou no chão. O cão das lágrimas uivou longamente, lançou um grito que parecia não acabar mais, um lamento que ressoou no corredor como a última voz dos mortos que se encontravam na cave. [...]
Que terá sucedido, devem ter dado com a cave, precipitaram-se pela escada abaixo à procura de comida, lembro-me de como era fácil escorregar e cair daqueles degraus, e se caiu um caíram todos, provavelmente nem conseguiram chegar aonde queriam, ou conseguiram-no e com a escada obstruída não puderam voltar, Mas tu disseste que a porta estava fechada, Fecharam-na com certeza os outros cegos, transformaram a cave num enorme sepulcro. [...] O cão das lágrimas não se manifestou, o assunto não lhe dizia respeito, de alguma coisa lhe servia ter-se transformado nos últimos tempos em cão das lágrimas.
José Saramago*, Companhia das Letras, 1995
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