sábado, agosto 20, 2005

Da hora

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Quando eu morri, a quinhentos anos atrás, já existiam vermes e políticos. Os dois são o assunto deste livro que o leitor segura em suas mãos. Lave-as depois. [...] Vivi por 68 anos e entre as muitas obras que deixei, ficaram um tratado político e uma comédia. Este livro tem um pouco disso e um tanto daquilo. Os vermes que o escreveram fizeram uma comédia política sobre os vermes que fazem da política, comédia.
Nicolau Maquiavel (psicografado)

Sei que os bons modos me obrigavam a ajoelhar aos pés de meu salvador e lhe agradecer mil vezes por ter-me salvo a vida. Mas o pavor era maior que a gratidão e, em vez de obrigados, só o que saiu da minha boca eram perguntas:
"Quem é você?, quem sou eu?, onde estamos?, de onde virmos?, qual o sentido da vida, onde tem comida?"
"Calma, uma coisa de cada vez."
Respirei fundo e comecei a falar o mais pausadamente possível:
"Eu estava numa planície verdejante..."
"Era uma folha de alface."
"Havia uma leve brisa..."
"O ar-condicionado do avião."
"E doces melodias ecoavam..."
"Música ambiente."
"Então fui jogado numa caverna..."
"A boca."
"Caí sobre algo vermelho e pegajoso..."
"A língua."
"Pedras amareladas quase me esmagaram..."
"Os dentes."
"Despenquei por um poço sem fim..."
"O esôfago."
"Caí dentro de um lago..."
"O estômago."
"E agora estou aqui..."
"O pâncreas."
Há de se perdoar minha ignorância. Naquele tempo eu era apenas um recém-nascido e não o velho de hoje, já passado dos meus 20 dias de vida. Tudo era surpresa, tudo me parecia novo e inexplicável. Eu queria entender o universo e seus seres, as luzes e suas sombras. Então fiz a pergunta que todos se fazem:
"E quem somos nós?"
"Vermes, ora essa!"
"Vermes?"
"Vermes."
"Vermes??"
"Vermes."
"Vermes???"
"Essa conversa está ficando monótona."
"Desculpe."
"Eu é que peço perdão. Não estou acostumado a receber visitas, mas não saio daqui pra nada."
"Para mim parece um ótimo lugar."
"Dizem que o pulmão é mais arejado e que no olho a vista é melhor, mas não saio daqui por nada."
"Pulmão? Olho?"
"Terei que lhe ensinar tudo, não é?"
Abanei meus cílios afirmativamente. Ele bufou:
"Pois bem, meu garoto, vou lhe fazer as honras da casa: nós vivemos dentro de um ser gigantesco, um homem. E nós, os vermes, o chamamos de Ele."
"Isso tudo é um ser vivo?"
"E dos mais vivos." [...]
"E o que Ele faz?"
"É um político."
"O que é isso?"
"Um tipo de Deus. Pelo menos é o que Ele acha."

José Roberto Torero e Marcus Aurelius Pimenta, "Os vermes"
Editora Objetiva, 2000

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