sábado, junho 20, 2009

Há dez anos



Deitadas na cama, ficamos na contagem regressiva. "E agora?" "Agora eu estou indo pra sala de parto." "E agora?" Agora você está nascendo... Dois minutinhos... Um minuto... Ah, você nasceu!" E então ela pediu pra dormir abraçadinha comigo, porque foi assim que ela passou sua primeira noite por aqui - abraçada comigo, numa cama da maternidade.

A mochila continua uma zona - oferecendo sempre um extenso cardápio de papéis (cortados, amassados, rasgados, colados, picados ou dobrados) ao gosto do freguês. No fim do dia, guarda cuidadosamente (aka "enfurna numa gaveta") a produção do dia, feita por ela mesma - seja um arquivo completo do FBI (com pastas de vítimas, credenciais e protocolos de segurança), seja de cardápios de culinária internacional ou revistas de moda. As aulas são levadas assim assado, sempre com uma oração a Ganesha antes de dormir ("Por favor, que eu saiba tudinho para a prova de Geografia amanhã."). Ela ainda corre pelo pátio como um moleque, subindo nas árvores e pulando janelas em vez de, como menina educada (cof! cof!), usar a porta do refeitório.

Mas alguma coisa mudou. Zé Colméia começou sua jornada ao mundo da pré-adolescência. Não que esteja deixando as bonecas de lado - que o digam as três Barbies que ganhou da família do pai, junto com uma coleção de bichinhos de pelúcia & panelinhas - mas ela notou, um dia no banho, que seu corpo começou a mudar muito, mas muito sutilmente. E sutilmente também ela começou a preferir suas blusas mais larguinhas.

Eu me faço de desentendida aos primeiros sinais do clássico "entreaberto botão, entrefechada rosa", mas sei que é um caminho sem volta. Que bom que assim seja, mesmo sabendo que um dia sua bonequinha preferida (um bebê já molambento de plástico comprado numa loja de R$ 1,99), que ela arrasta por aí desde os quatro anos, um dia permanecerá na cama ou, pior, vá habitar uma gaveta.

Ela leu um poema e se convenceu que o amor entre marido e mulher acaba. E assim me deu salvo-conduto para namorar. Porque começou a olhar o pai com outros olhos, e não gostou do que viu. Da noite para o dia o príncipe, do nada, virou um sapo, e a ilusão deu lugar ao desapontamento, uma maturidade forjada pela decepção. Hoje, quando alguém fala, cada vez menos empina o narizinho e faz do jeito dela. Começou a prestar atenção naquilo que considerava ruído de fundo, e entendeu que escutar os outros pode ser muito vantajoso. Pára, pensa, vira a cabecinha e reflete como o mundo é estranho e as pessoas, esquisitas. Mas, em compensação, percebeu que a loucura, às vezes, pode ser apenas uma maneira de pensar o mundo de outra maneira, mais colorida e sonora.

E é esse mundo, que ela vai descobrindo a cada dia, que ficou melhor para mim desde que ela chegou, há uma década. Um mundo que já está ficando pequeno para a sua curiosidade e criatividade.

Feliz aniversário, filha. Que jamais existam fronteiras para o seu talento.

4 comentários:

Zelma Rabello disse...

Minha filha está com 37 anos, já é mãe de minha neta de 16... Seu texto, emocionante, me fez lembrar de quando ela menstruou a primeira vez e dos versos que lhe fiz então e que nem consegui terminar, de tanta emoção. Divido com você.

Quis dar as primeiras flores
Desse teu desabrochar,
Mas as primeiras, vermelhas,
Floresceram no teu corpo...
São alvíssaras de vida,
Brincando de te adultar!...

Manu disse...

Felicidades à Zé Colméia! Que seu adolescer seja delicioso como tem sido a sua infância (ainda que não tão tranquila como deveria)!

Quanto ao seu texto, sem palavras, de novo.

Bjs.

Tina Lopes disse...

Ah, linda, emocionei de novo, viu. Tomara que eu tenha um pouco da tua serenidade qd a Nina chegar nessa fase. Bjk.

BethS disse...

Tenho uma neta que passa pelas mesmas coisas, é uma emoção acompanhar seu dia a dia.
voce escreve muito bem.
beijos pras duas.