sábado, fevereiro 18, 2006

Mudez da pele

Bia estava aprendendo a escrever. Gostava de deitar no tapete da sala, com o estojo gigante de lápis de cera (que a tia Geralda, que trouxe o presente dos Estados Unidos, gostava de chamar de "creiôns") e muito papel. Passava horas desenhando cada letra, uma a uma de cores diferentes. Ficava tão dentro daquilo que só depois de muitos dias foi que percebeu que, quando abria a caixa dos lápis, vó Maria começava a fazer uns barulhinhos muito estranhos. Vó Maria, que ficava sempre na mesma posição que mamãe a botava, sentada na maior poltrona da sala, "para ela ficar confortável, tadinha", mamãe dizia.
Na verdade, ninguém prestava mais atenção à vovó, desde que ela tinha tido aquele desmaio esquisito, dentro da garagem (mamãe disse que foi um "derrame", mas nem eu nem a Bia entendemos o que se derramou dentro da vovó). Um dia, a Bia resolveu perguntar o que a vovó queria, mas ela não disse nada que desse para entender. Falava baixinho, mastigado, um barulhinho que parecia nascer bem grande na barriga mas chegava na boca já cansado da subida.
Quando a Bia se inclinou para ouvir, vovó agarrou com força o lápis que ela estava segurando. E não quis soltar. Bia então botou embaixo do lápis o seu bloco. Com esforço, vovó fez umas coisas esquisitas, que pareciam letras com cara de desenho: + O C Μ | П.
Bia ficou com aquele papel por muito tempo. Mostrou à mamãe, a mim, ao papai, à Gerusa (uma besteira, já que a Gerusa lia pior do que eu), e ninguém sabia o que era aquilo.
E vovó continuava a fazer aqueles barulhinhos cada vez que Bia aparecia de manhã com seus lápis e seu bloco. E Bia continuou a estudar o alfabeto. Um dia, peguei-a sentada no colo da vovó falando sobre o primeiro livro que tinha lido. Mamãe ainda brigou com ela – "Vai machucar sua avó!" – mas Bia respondeu: "Vou nada, ela é que quer!". Todo mundo riu (menos a vovó, claro, que ela não podia mais rir, nem falar nem nada) e Bia continuou a sentar na poltrona grande da sala. Brincava com os dedos da vovó, alisava o seu pescoço, e ainda arriscava enfiar as duas mãos pelo seu cabelo fofo (que a Gerusa penteava todo dia, branquinho que era, e enrolava num coque que despencava perto da hora do almoço).
Vovó morreu uns três anos depois. Nunca voltou a falar, andar ou se mexer. Mamãe dava comida a ela, brigava quando ela cuspia os remédios e chorava que não queria mais "cuidar dessa planta" (quando disse isso, papai fechou a cara e mandou a gente sair da cozinha).
Quando Bia estava arrumando o quarto da vovó, que agora ia ser o dela, achei o papel onde vó Maria tinha rabiscado.
– Olha só aquelas coisas estranhas que a vovó escreveu! Agora a gente nunca mais vai saber o que é, né?
– Eu sei. E não contei para ninguém porque ninguém queria, mesmo, saber.
– O que a vovó queria?
E Bia me disse a frase que fez meu coração parecer uma bola de chumbo, como aquelas que os presos levam naqueles filmes velhos que vovó gostava tanto de ver:
– "Toque em mim".

3 comentários:

Ana disse...

Que texto lindo, Suzana! Fiquei emocionada. Minha avó está assim, também, há uns 15 anos, totalmente dependente da família. E é tratada com muito carinho por todos, inclusive pelos bisnetos. Pra mim, ela é a representação física da saudade.

Marilia disse...

Suzana, vc me fez chorar!
Que coisa linda, te adoro!

Bjos

Anônimo disse...

Só uma criança mesmo pra ter tanta sensibilidade...... Que linda história! :)