quarta-feira, dezembro 06, 2006

11 de março de 2003



"Minha querida;

Você, na sexta-feira, passara o dia inteiro bebendo mate; era o único suco que tínhamos em casa. Catatau há tempos ressonava na cama, e você aprontando no quarto. Começou "ER". Entra um paciente com prognóstico muito ruim: sofrera um acidente de carro e arrebentara a cabeça, com perda de maça encefálica. Palavreado difícil que você, obviamente, não entendeu nada, e veio o esperado "O que está acontecendo?". "Bom, o moço estava dirigindo sem o cinto e bateu ("Pow!", disse eu, espalmando a minha mão na sua testa) a cabeça. Ele se machucou muito."
E você acompanhando. "E agora?". "Ah, ele não vai acordar mais. Ele foi para o céu. E eles vão tirar o coração dele, o que tem na barriga dele, para dar para outras pessoas". Silêncio... "É assim: o moço foi para o céu, e não vai acordar mais. Em outro lugar, tem uma pessoa que está com o coração muito doente. Então, eles vão tirar o coração desse moço – já que ele está no céu e não vai acordar mais – e dar para o moço que está doente."

Mais silêncio, e você aconpanhando a perícia e as besteiras de Peter Benton, o cirurgião que estava metido na história. Começa a retirada dos órgãos. "Olha, agora eles estão tirando o coração dele". "O que é aquela bolsa?" "É onde o coração vai; eles botam bastante gelo, e botam o coração ali". "Ele vai embora?". "Não, ele vai levar a bolsa com o coração dentro até o helicóptero, está vendo? E o helicóptero vai levar o coração até o outro moço que está doente". E lá se vai o helicóptero levando o coração para ser doado, enquanto Peter Benton assume, no alto do prédio do hospital, aquele ar de heróis que cumpriram sua missão.

Acaba o filme. E você suspira, abre o maior sorriso e diz, sem desgrudar o olhar da tela: "Gostei dessa história." E seu rosto dizia que você tinha entendido perfeitamente o que tinha acontecido ali.

Televisão desligada, você me pediu que eu deitasse com você. Nos ajeitamos na cama, sua irmã dormindo profundamente, você pega minhas mãos e diz: "Não quero ir para o céu." "Ih, vai demorar muito para você ir pro céu." "Não quero que você vá para o céu." "Por quê?" "Porque aí eu não vou mais ver você." "Ah, mas vai demorar muito ainda. Olha, você não diz que fala com a vovó [...]? Então, ela já foi pro céu. E não é assim: as coisas acontecem de uma maneira certa. As suas outras vovós vão primeiro pro céu, e esperam a mamãe e o papai. Quando eu for, eu vou te esperar lá." "Ah, não quero que você vá, mamãe! E eu também não quero ir!" "Então, é isso que eu estou falando! Ainda falta muito! Você ainda vai crescer, aprender a ler, a escrever (maior sorriso: "É???!"), vai namorar, ter um filhinho, seu filhinho vai ter um filhinho... Vai demorar muito, ainda." "Vai, mamãe?", "Vai, filha, vai demorar. E a gente diz que não quer ir pro céu mas e se for uma coisa maravilhosa, linda? Com um monte de cachorros, flores, e um lugar pra gente desenhar e pintar ("É, e se for assim?", você diz), um lugar muito legal? A gente não sabe, né?"

E foi pensando nisso que você dormiu. E eu tive certeza que, essa noite, você entendeu, melhor do que ninguém, todo o amplo significado da morte: perda, saudade, dor no coração, aquele vazio horrível que a gente sente ante a perspectiva de não ter alguém querido por perto. Ter que esperar a sua vez de ir. Mas também que ela pode ser uma bênção, algo desconhecido. Você entendeu o grande enigma que a morte é para todos nós.

Amor sempre da sua,

Mamãe"

2 comentários:

Marilia disse...

Você sempre me faz aguar os olhos com essas coisas deslumbrantes que escreve.
Você e suas filhas maravilhosas!Que vocês tenham uma vida cheia de saúde, felicidade e histórias compartilhadas na cama, ao esperar o sono chegar!

Anônimo disse...

Lindo demais....e, neste momento, muito significativo para mim!