Uma pessoa muito querida se foi, e a nós que ficamos resta apenas pensar muito, sentir bastante, chorar e engolir a raiva, conformar-se. Ontem, conversando com a mãe da Carolina, ficamos horas ao telefone nos questionando quão inútil (não sei se essa é a melhor palavra) tornam-se os vestígios da existência de uma pessoa depois que ela se vai, materialmente falando.
Ela me disse que na segunda, de volta do cemitério, entrou no quarto da filha e começou a separar as coisas dela. Fazer logo antes que o arrependimento batesse e ela decidisse ficar com tudo, transformar o quarto naquele lugar "do jeito que ela deixou antes de ir para o hospital". Não consigo nem imaginar a dor.
Ela contou que abriu gavetas e armários e não arrumou nada; ficou horas revirando cada caixa, olhando cada envelope, revista, saquinho, embalagem de plástico. Lendo pilhas de bilhetes, separando tíquetes de cinema e teatro. Descobrindo segredos da adolescente que a filha era. Tentando entender a utilidade de pulseiras de plástico, embalagens de filmes cheias de contas coloridas, recortes de receitas rasgados, pastas cheias de trabalhos escolares de anos.
"Pra que ela guardou isso tudo?" Oito pastas com recortes e impressões feitas via web da banda de rock preferida dela. Cadernos anotados com telefones sem nome, blocos com endereços sem identificação, rabiscos urgentes sublinhados e marcados com caneta vermelha.
Guardar para um dia usar. Porque jogar fora aquelas notas de supermercado pode ser uma insensatez. Os postais sem nome, as figurinhas de um álbum que não existe mais. Telefones de anos, adesivos de disquetes que estão fora de linha, etiquetas amareladas. Receitas que a vida não terá duração suficiente para ver sair do forno ou deixar a panela.
"Eu não sei o que jogar fora, se devo jogar fora. Não significam absolutamente nada para mim, mas deviam ser muito importantes para ela, porque estavam juntos num envelope ou dentro de uma caixa de sapatos. O que eu faço?"
E ela chorava, como se mandar para um aterro sanitário os guardados preciosos da filha diminuíssem o imenso amor que uma sentia pela outra. "Sabe o que eu mais penso agora? A tristeza que ela deve estar sentindo em imaginar que eu estou jogando fora tudo o que ela guardou com tanto carinho. O que é uma doideira, como é doideira a aflição que eu senti quando o enterro acabou e eu não queria sair de perto da sepultura, imaginando que logo ia ser noite e ela ia ficar sozinha ali, no escuro, sem ninguém a fazer companhia para ela."