sexta-feira, maio 19, 2006

Vizinho, vizinha*



No prédio dos meus pais, mora a viúva de um ministro... sei lá, do gabinete do Marechal Deodoro. Muito velhinha, está sempre maquiada, arrumada, perfumada e perolada. Sai todas as manhãs para um footing por Laranjeiras. Ela conhece todo mundo pelo nome - incluindo o bicheiro da esquina.
No prédio dos meus pais, a vizinha de baixo casou o último dos filhos. Passou a malhar, cortou o cabelo, pintou de vermelho as unhas e renovou o guarda-roupa. Ontem, encontrei com ela saindo do elevador, de short e camiseta onde se lia "Ready to action".
No prédio dos meus pais, o oficial da Marinha que mora no oitavo andar espera pontualmente às seis e meia a carona, em pé na escadaria do prédio. Muitas meninas casadoiras passaram a acordar mais cedo para apreciar o espetáculo do garboso oficial impecavelmente de branco, quepe sombreando os olhos, sorrir com todos aqueles dentes para toda moçoila que passa. Minha mãe, que o conhece desde pequeno, diz que ele não gosta disso. Não, não é de toda essa atenção que ele não gosta; é das moçoilas. Quem viver, verá.
No prédio dos meus pais não existe mais o jardim onde brinquei de pique; as tartarugas que devem ter se fundido às pastilhas da parede, de tão velhas.
O prédio dos meus pais não tem mais seu Joaquim, o faxineiro velhinho, magro e muito branco, que subiu na carreira para se tornar porteiro. Na feira, comprava um ovo, duas coxas de galinha, um tomate, duas laranjas: morreu senil, demente e só, amparado pela enfermeira que o condomínio contratou em honra aos serviços prestados.
Não tem mais seu Augusto, português inocente e culturalmente racista, que vinha trabalhar de bicicleta; não tem mais minha querida avó materna, com suas jóias extravagantes, seus turbantes comprados em Paris, seus jantares dançantes, seus telefonemas intermináveis para meio Rio de Janeiro, já morto e esquecido.
O prédio dos meus pais agora tem apenas um apartamento sem móveis, só com um aparador repleto de retratos de minhas filhas e onde eu, todos os dias, paro meu trabalho por um momento e vejo, pela janela do último andar, minha vida passar.

* Um livro maravilhoso, escrito por Roger Mello e ilustrado por ele e mais dois amigos: Mariana Massarani (que fez a vizinha) e Graça Lima (que desenhou o vizinho). Roger Mello incumbiu-se de criar o corredor entre os dois apartamentos. Da Companhia das Letrinhas.

Um comentário:

anouska disse...

nossa que post lindo. assim você vai me fazer chorar. e olha que isso nem está tão difícil assim hoje. bj