sexta-feira, março 02, 2007

Sépia



Um dos meus hábitos mais nocivos - porque sempre me faz perder a hora, o ponto do ônibus, a estação do metrô - é a maneira como eu me desligo desse mundo e mergulho, numa velocidade vertiginosa, no meu passado. E o processo não é apenas o de lembrar a imagem, o filminho: eu me apego aos sons, aos cheiros, às cores.

Uma de minhas primeiras lembranças é o som da aliança da minha mãe batendo no vidro enquanto ela rolava, entre as mãos, minha mamadeira. Tinha menos de dois anos. Mas me lembro perfeitamente daquele som, que sempre foi reconfortador: minha mãe está vindo, minha mãe está aqui. Tec, tec, tec!

O cheiro dos pinheiros que anunciavam, antes que pudéssemos ver, do banco de trás do fusca da minha mãe (ou do Karman Ghia do meu pai), a entrada de Teresópolis. A avenida descia, depois subia. Virar a segunda à direita, uma curva fechada depois para a esquerda, passar na frente da casa mal-assombrada. O momento exato em que o carro ia começar a trepidar bem suavemente, quando a rua mudava do asfalto para o paralelepípedo.

A gritaria na casa da minha avó paterna nos almoços de domingo. A gritaria da galinha, bem entendido. Numa casa cercada de pés de açaí em Manaus ou num apartamento acarpetado no Leme, não fazia diferença: a galinha tinha seu passamento com data e hora marcada. Não se compra galinha já morta, onde já se viu? E assim eu assisti diversas vezes aquele corpinho com a cabeça pendurada, esguichando sangue pra todo lado, avançar tropegamente sala adentro, com minha avó (munida de uma bacia) atrás.

O cheiro de Silvo, usado para dar brilho à prataria, na véspera dos jantares memoráveis no apartamento de minha avó materna. Ela era sozinha (meus avós de separaram muito antes de eu nascer) e sabia dar festas memoráveis. Baixava dos armários as toalhas de linho e os cristais do enxoval comprado em Paris (onde meus avós passaram a lua-de-mel para que meu avô estudasse e, quando voltasse ao Brasil, ajudasse no projeto de construção do Campo de Marte, em São Paulo). Eu e minha irmã nos olhávamos, na altura do tampo da mesa, e tentávamos imaginar pra que serviriam tantos copos, talheres, pratos, apoios & apetrechos de prata.

O som de meu pai chegando em casa depois do trabalho, jogando o molho de chaves numa travessa de louça ao lado da porta. Podíamos acertar o relógio por ele. O cheiro (que até hoje não senti igual) que ele trazia da fábrica onde trabalhava. Um cheiro que misturava plástico novo, ar-condicionado e um perfume suave de madeira.

Às vezes, me pego cantando a Marselhesa, dos tempos em que estudei num colégio francês. As músicas que minha babá Rachel cantava para mim. A voz de minha avó paterna entoando a oração de São Francisco ("Senhor, fazei-me instrumento de tua paz..."). Minha avó materna jogando a cabeça pra trás ao dar uma gargalhada (gesto que herdei).

Esse conjunto de sons, cheiros, sabores (ah, os sabores! Não falei deles!), cores, luzes, imagens são para mim um tesouro que me dói jamais poder partilhar com alguém. Porque ninguém estava lá naquele exato momento em que minha avó querida, pronta e elegante para seu jantar anual, se inclinou sobre mim, cheirando a perfume de jasmim e a pó-de-arroz, e me beijou, achando que eu estava já dormindo.

Eu não estava, vovó. Enganei você.

7 comentários:

Lys disse...

Lindo texto.

Que memória! Lembrar do tilintar da aliança da mãe na mamadeira! Eu acho que não tenho lembranças de quando eu tinha dois anos. Todas as cenas daquele tempo que me vem à memória acho que construí a partir do que outras pessoas me contaram. Fica tudo muito confuso: lembrança ou construção? Impossível dizer.

Anônimo disse...

Eu lembro do tilintar da aliança da minha mãe também - mas rolando no vidro de esmalte :D

Anônimo disse...

Nossa, mergulhei no tempo e percebi como existem lembranças em comum. Coisas que passaram e, só por isso, dói o coração de tantas saudades! Chorei...estou sensível!
Fico imaginando que tipo de lembranças minhas filhas guardarão...
Adoro os teus textos!
Beijos

Marilia disse...

nossa, suzana, que texto deslumbrante...des-lum-bran-te!!!

Anônimo disse...

Eu lembro do som da aliança da minha mãe quando lavava um copo na pia. Anos mais tarde, essa lembrança me viria toda vez que eu lavava um copo usando aliança. Hoje já não uso mais...

Anônimo disse...

Percebi que toda vez que escrevo para você presto especial atenção na minha redação, clareza, objetividade, tentando cortar o desnecessário. Tentando escrever bem, para que você não tenha que desculpar erros demais da minha parte. Como você está (interrogação)

Anônimo disse...

eu não terminei de ler. por motivos que razão desconhece me deu vontade de chorar.
quando criança também rolava essa coisa de matar a pobre galinha em casa.