sexta-feira, junho 20, 2008

Há nove anos



- Batata pálida, mãe.
- Ãhn? O quê?
- Batata pálida, mãe. Não esquece da batata pálida.
- [...]
- Alô, mãe? Batata pálida! Pra botar no cachorro-quente! Acorda, mãe! Tá dormindo?

Batata palha. E ela não tem a menor paciência comigo. Nem com o mundo. Muita pressa. Muita. "Mastiga!" "Ouh, ouh, você aí, volta e escova isso direito!" "Peraí, a calça tá aberta!" "Auhn... Seis e meia, filha, tenha dó. Me deixa dormir, hoje é sábadzzzzz..."

O corpinho comprido e miúdo não tem como ganhar mais algumas carninhas, como a irmã. Puro Osso, é esse o apelido que a professora botou dela, mesmo comendo colinas de arroz, feijão, carne e salada. Tudo bem misturado num cimento que só sai do prato para a boca a bordo de uma colher. De preferência, manejada como uma pá. Os cabelos eternamente despenteados, uma juba incontrolável, a mochila eviscerada pelos corredores da escola mostrando as tripas sem pudor: bonequinhas, bichinhos, copos descartáveis, pedaços de argila seca, canetas sem tampa, tampas sem canetas, casaco virado do avesso e uma resma de papel nos sabores folhas picotadas, folhas amassadas, folhas dobradas, folhas coladas, folhas rasgadas & folhas sem-forma-definida. E mais um livro tirado na biblioteca, que é de lei. Ah, e o caderno das princesas. Para anotações diversas. "Mãe, fala com a diretora que eu fui ontem no refeitório e só tinha cremicraque (sic). Eu não gosto de cremicraque, mãe. Mãe, eu tô passando fome. Fala com a diretora."

Vivendo num inferno astral há pelo menos duas semanas, minha Pucca achou seu personagem perfeito, plena de encantos orientais pelos quais essa menina anda fascinada - cada vez mais, a cada dia. Porque a menininha é meiga, carinhosa, adora animais, mas maltrata impiedosamente quem ela ama de paixão - depois do soco, do grito, do empurrão, vem a voz macia, as mãos idem acariciando qualquer pedaço de pele à mostra, a voz doce e sentida de quem quer muito, mas muito mesmo pedir perdão mas simplesmente não sabe como. Então, em vez de simplesmente deixar a boca cuspir o protocolar "Desculpe", só consegue expressar seu arrependimento pelo coração, deixando-o falar sem usar a voz.

Essa é minha Zé Colméia. Nove anos desde que saí da maternidade com meu embrulhinho gorducho, os dedos longos chamando a atenção das enfermeiras. Nove anos de um aprendizado de vida imenso, que jamais poderei pagar a ela. Porque aprendi a duras penas que, independentemente de chamar alguém de "filha", o mais difícil no amor é dá-lo a quem parece que não o quer, que nos diz palavras ásperas, que nos faz perder horas de sono perguntando "Como isso aconteceu?". É o amor difícil, suado, batalhado, esmerilhado e talhado em brigas duras e reconciliações inesquecíveis. Polido e lapidado. Somos duas caminhando nessa estrada pedregosa, mas sempre de mãos dadas.

Cada bilhete, cada desenho, cada escultura de argila ou massinha eu tenho guardado - da camiseta onde eu pareço uma barata vermelho-amarronzada gigantesca ao cartão feito ontem, às dez da noite, a irmã já dormindo no sofá enquanto eu gravava os CDs das lembrancinhas - tudo me faz encher os olhos de lágrimas: "Mamãe, você é meu anjo. Nunca saia do meu lado."

Feliz aniversário, querida.

Um comentário:

parla marieta disse...

Ah, que delícia de post, que post tocante, que delícia de filha. Parabéns pra ela, párabéns pra você.
Adoro vocês três.
Beijos da tia Little.