sexta-feira, setembro 02, 2011

Day 24: Favorite book series



O cavaleiro, um tanto obtuso, que lhes havia trazido a missiva, entregara fielmente sua mensagem oral: "Sem vestígios".
Era a esse respeito, precisamente, que eles conversavam.
— Têm, realmente, exigências estranhas, essa gente da corte, bispos e outros lordes! — disse Maltravers. — Mandam-nos matar, e que isso não se veja.
Como proceder? O veneno deixava os corpos negros: depois, seria preciso procurá-lo entre pessoas que poderiam dar com a língua nos dentes. Estrangulamento? A marca do nó corrediço fica em torno do pescoço, e o rosto se conserva todo azul.
Foi Ogle, o antigo barbeiro da Torre de Londres, quem teve o traço de genialidade. Tomás de Gournay concorreu com alguns melhoramentos para o plano, e o comprido Maltravers riu-se muito, mostrando as gengivas ao mesmo tempo que exibia seus imensos cientes.
— Será castigado por onde pecou! — exclamou ele. A idéia parecia-lhe verdadeiramente astuciosa. [...]

Esperaram pela noite. Gournay mandou preparar nas cozinhas uma boa refeição para o prisioneiro, com um pâté macio, aves assadas no espeto, uma rabada com molho. Eduardo não tinha ceado daquela maneira desde as noites de Kenilworth, na casa de seu primo Pescoço-Torto. Ficou espantado, um tanto inquieto, depois reconfortado por aquela boa comida fora do comum. Em vez de lhe trazerem uma escudela para sua cama de palha, tinham-no instalado em pequeno quarto vizinho, num escabelo, o que lhe parecia conforto miraculoso. E ele comia aqueles pratos de que quase havia esquecido o sabor. Também o vinho não lhe regatearam, um bom vinho clarete que Tomás de Berkeley mandara vir da Aquitânia. Os três carcereiros assistiam àquele bródio e piscavam os olhos uns para os outros.
— Ele não terá nem sequer tempo para digerir isso — cochichou Maltravers a Gournay.
O colossal Towurlee estava junto da porta, que obstruía completamente.
— Muito bem, agora já nos sentimos melhor, não é verdade, milorde? — disse Gournay quando o antigo soberano acabou de fazer sua refeição. — Agora vamos conduzir-te a um bom quarto, onde encontrarás uma cama de plumas.
O prisioneiro, de crânio raspado, de comprido queixo trêmulo, olhou para seus guardas com surpresa.
— Recebestes novas ordens? — perguntou. Seu tom era cheio de temerosa humildade.
— Ah! Sim, está claro que recebemos ordens e vamos tratar-te bem, milorde! — respondeu Maltravers. — Mandaram mesmo que te déssemos fogo, lá onde vais dormir, porque as noites começam a esfriar, não é mesmo, Gournay? É a estação que o exige: já estamos no fim de setembro.

Fizeram o rei descer uma escada estreita, depois atravessar o pátio relvoso do keep, em seguida subir do outro lado, junto à muralha. Seus carcereiros tinham dito a verdade: ali havia um quarto, não um quarto de palácio, mas um bom aposento, limpo e caiado, com um leito de grande colchão de penas, e uma espécie de braseiro, cheio de brasas ardentes. Aquele aposento estava quase aquecido demais.

O espírito do rei agitava-se em pensamentos confusos, e o vinho subia-lhe um pouco à cabeça. Era, pois, suficiente uma boa refeição para que se recuperasse o gosto de viver? Quais seriam as novas ordens? O que acontecera para que lhe testemunhassem tantas atenções súbitas? Talvez uma revolta no reino: Mortimer caído em desagrado... Ah! Se fosse possível tal coisa! Ou, simplesmente, talvez o jovem rei tivesse se inquietado, enfim, sobre a sorte de seu pai, e ordenado que o tratassem de maneira mais humana... Mas ainda que tivesse havido revolta e todo o povo se houvesse erguido em seu favor, jamais Eduardo aceitaria retomar o trono, jamais, disso ele fazia a Deus um juramento. Porque, rei de novo, recomeçaria a cometer erros: não fora feito para reinar. Um convento calmo, eis tudo quanto desejava, e poder passear por um belo jardim, ser servido das iguarias de que gostava... rezar, também. E depois, deixar crescer a barba e o cabelo, a menos que conservasse a tonsura, ainda que aquela lâmina, passando-lhe pelo crânio todas as semanas, lhe despertasse horríveis lembranças. Que negligência da alma, e que ingratidão aquela de não agradecer ao Criador essas coisas simples que são o bastante para tornar uma vida agradável: nutrição saborosa, aposento quente!... Havia um atiçador no fogareiro em brasa...
— Deita-te, então, milorde! A cama é boa, tu verás — disse Gournay.


E, realmente, o colchão era macio. Encontrar de novo um verdadeiro leito, que bom! Mas por que os outros três conservavam-se ali? Maltravers sentara-se num escabelo,[...], e olhava para o rei. Gournay atiçava o fogo. O barbeiro Ogle tinha na mão um chifre de boi e uma serra pequena.
— Dorme, sire Eduardo, não te preocupes conosco, nós temos um trabalho a fazer — insistiu Gournay.
— Que estás fazendo, Ogle? — perguntou o rei. — Talhas um chifre para fazer um copo?
— Não, milorde, talho um chifre, apenas, não para fazer um copo.
Depois, voltando-se para Gournay e marcando um lugar no chifre com a unha do polegar, o barbeiro disse:
— Penso que deste tamanho está bem, não achas?
O ruivo de pele de porco olhou por cima do ombro e respondeu:
— Sim, creio que está bem. Bonum est.

Depois, recomeçou a atiçar o fogo. A serra rangia sobre o chifre do boi. Quando ele se partiu, o barbeiro estendeu a parte afilada para Gournay, que a segurou, examinou, e nela meteu o atiçador ao rubro. Um cheiro acre espalhou-se, empestando no mesmo instante o aposento. O atiçador saiu pela ponta queimada do chifre. Gournay tornou a colocá-lo no fogo. Como queriam que o rei dormisse com toda aquela azáfama em torno dele? Só o teriam afastado daquela masmorra onde havia carniças para enfumaçá-lo com chifre queimado? Subitamente, Maltravers, sempre sentado e sempre olhando para Eduardo, perguntou-lhe:
— Teu Despenser, que tu amavas, tinha os enfeites sólidos?
Os dois outros soltaram uma gargalhada. Por causa daquele nome assim pronunciado, Eduardo sentiu como que um despedaçamento em seu espírito, e compreendeu que aquelas criaturas iam executá-lo ali mesmo. Preparavam-se para infligir-lhe o mesmo suplício atroz que sofrera Hugo, o Jovem?
— Não ides fazer isso! Não ides matar-me! — exclamou ele, sentando-se subitamente em sua cama.
— Nós? Matar-te, sire Eduardo? — disse Gournay, sem mesmo se voltar. — Quem poderia fazer-te acreditar numa coisa dessas? Temos ordens. Bonum est, bonum est...
— Vamos, torna a deitar-te — disse Maltravers.
Mas Eduardo não se deitava. Seu olhar, no rosto raspado e magro, ia, como o de um animal encurralado, da nuca ruiva de Tomás Gournay para o comprido rosto amarelo de Maltravers, e dali para as bochechas de boneca do barbeiro. Gournay tinha retirado o atiçador do fogo e examinava a extremidade incandescente.
— Towurlee! — chamou ele. — A mesa!
O colosso, que esperava no aposento vizinho, entrou, trazendo pesada mesa. Maltravers foi fechar de novo a porta, dando volta à chave. Por que aquela mesa, aquela espessa tábua de carvalho que se colocava geralmente sobre cavaletes? Ora, não havia cavaletes naquele quarto. E entre tantas coisas estranhas que se passavam em torno do rei, aquela mesa, trazida nos braços por um gigante, tornava-se o objeto mais insólito, mais assustador. Como se poderia matar com uma mesa? Esse foi o derradeiro pensamento claro do rei.
— Vamos! — disse Gournay, fazendo sinal a Ogle. Aproximaram-se, cada qual de um lado do leito, atiraram-se sobre Eduardo, viraram-no de barriga para baixo.
— Oh! Os patifes! Os patifes! — gritava ele. — Não, não haveis de matar-me.
Agitava-se, debatia-se, e Maltravers tinha vindo ajudá-los, e os três não foram demais. E o gigante Towurlee preparava-se para lhes trazer auxílio.
— Não, Towurlee, a mesa! — exclamou Gournay. Towurlee recordou-se do que lhe tinham recomendado. Ergueu a enorme prancha e deixou-a cair em toda a largura sobre os
ombros do rei. Gournay levantou a roupa do prisioneiro, baixou-lhe os calções, cujo tecido usado se rasgou. Era grotesco, miserável, um fundilho assim exposto, mas agora os assassinos não tinham mais disposição para rir. O rei, meio morto pela pancada e sufocando sob a tábua que o enterrava no colchão, debatia-se, esperneava. Quanta energia lhe restava ainda!
— Towurlee, agarra-lhe os tornozelos! Não, assim não, separa-os! — ordenou Gournay.
O rei tinha conseguido desembaraçar a nuca despida de sob a mesa, e virava o rosto de lado, para tomar um pouco de ar. Maltravers pesou-lhe com as duas mãos sobre a cabeça. Gournay apoderou-se do atiçador e disse:
— Ogle! Enterra o chifre, agora!
O rei Eduardo teve um sobressalto de força desesperada quando o ferro em brasa penetrou-lhe nas entranhas: o urro que soltou, atravessando as muralhas, atravessando o keep, passando por cima das lajes do cemitério, foi acordar as pessoas até mesmo nas casas do burgo. E os que ouviram aquele longo, lúgubre, pavoroso grito, tiveram, no mesmo instante, a certeza de que acabavam de assassinar o rei.

Na manhã seguinte, os habitantes de Berkeley subiram ao castelo, a fim de se informarem. Responderam-lhes que o antigo rei morrera durante a noite, subitamente, soltando um grande grito.
— Vinde ver, mas, sim, aproximai-vos — diziam Maltravers e Gournay aos notáveis e ao clero. — Estamos fazendo neste momento os arranjos mortuários. Entrai, todos podem entrar.
E as pessoas do burgo verificaram que não havia qualquer marca, nenhuma ferida, nenhuma chaga naquele corpo que estavam lavando, e que tinham o cuidado de virar e revirar diante deles. Apenas um ríctus horrível torcia o rosto do cadáver.
Tomás Gournay e João Maltravers olhavam-se: fora uma brilhante idéia aquela do chifre de boi para meter o atiçador às avessas. Verdadeiramente, uma morte sem vestígios, e, naquele tempo tão inventivo em matéria de assassínios, eles tinham descoberto um método perfeito.

A Loba de França (vol. 5) - Os reis malditos
Maurice Druon - Tradução de Flávia Nascimento
Editora Bertrand Brasil, 2005


São sete volumes - "O Rei de Ferro", "A rainha estrangulada", "Os venenos da coroa", "A Lei dos Varões", "A Loba de França", "A lis e o leão", "Quando um rei perde a França". Li a série inteirinha com dez anos, escondida do meu pai, que tinha determinado que esse não era o tipo de leitura apropriada para uma menina da minha idade. Eram sete volumes de capa dura, com ilustrações da capa em bico-de-pena, comprados pelo Círculo do Livro, lá pelos idos dos anos 1970. Foi a primeira obra adulta na minha vida de leitora.

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