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Em novembro, um deslizamento de terra matou um dos cachorros dos meus pais. Então, meu pai chamou a Prefeitura que foi lá, cutucou bem tudinho e disse que estava tudo ok. Não estava. Uma obra clandestina do único vizinho dos meus pais num raio de quilômetros desviou um curso d'água para a direção de uma imensa rocha. Nas chuvas que se seguiram, o terreno já fofo afundou de vez e a pedra rolou encosta abaixo. Meus pais não estavam em casa. A pedra bateu à porta da cozinha e levou metade da casa - só parou no ribeirão que dá as boas-vindas a quem chega ao sítio.
E então eu fiquei subindo e descendo a serra. Por quase dois meses. Larguei minha casa, meu trabalho e minhas filhas para ver meu pai completamente aturdido revirando, com a ponta da bengala, os restos enlameados de seu álbum de casamento. Seus documentos, diplomas, certificados. As fotos da infância dos seus filhos e netos. As fotos de infância de seus pais. Seus preciosos livros já sem as letras nas páginas amolecidas pela chuva.
Eu ouvi meu pai chorar por dentro. Um choro quente, desesperado, cheio de porquês. Minha mãe não esboçou nenhuma reação. Apagou-se como uma vela já no fim e só acordou no hospital, o rosto muito pálido refletindo o que fazer para recuperar o que foi perdido - em alguns casos, para sempre.
Com somente a roupa do corpo e nada mais, no meio daquele frio todo, meu pai olhou no fundo dos meus olhos e murmurou: "Que bom que você não estava aqui com as meninas. Que bom que nós não estávamos aqui. Que bom que você está aqui agora." Naquele momento, ganhei o único presente de Natal que esperei a minha vida inteira para receber: o amor do meu pai.
Que todos vocês ganhem, nesse fim de ano, o que mais almejaram a vida inteira - em tamanho, em intensidade, em eternidade.
Beijos meus e das meninas. Não sumam.