terça-feira, agosto 05, 2008
Em frente
Sábado de chuva. Seis da tarde, lusco-fusco (meu coração prefere essa hora; meu cérebro, o alvorecer. Vai entender uma coisa dessas). A TV sai do ar por alguns momentos e eu me vejo refletida na tela. Estou sentada na cama, a tábua de passar roupas aberta. Um cesto gigantesco vomita o trabalho acumulado das sem-empregada, título de sócia-honorária desde maio deste ano.
Uma camiseta velha, dois números maior do que eu. Chinelos que viram dias melhores, meias idem. Um short que foi, no fim do milênio, uma calça. Cabelos presos de qualquer maneira, óculos, unhas sem esmalte e sem trato. O quarto escuro, silêncio, o frio do fim da tarde.
Olho para a camiseta da Catatau aberta à minha frente, o ferro quente na mão direita enquanto a esquerda alisa os babados delicados acima da estampa de Barbie. Vem uma lágrima, outra, e mais outra. De repente, estou me vendo há 15 anos, toda ambição profissional. Àquela hora, há 15 anos, eu estaria bebendo um chope, me arrumando para começar o sábado com cinema e jantar, vendo se há cerveja suficiente em casa para o pessoal que está chegando para a festa, antecipando o gosto de ver minha matéria publicada ou ansiando o momento de começar a apurar outra.
Voando vertiginosamente para trás, num mergulho que ajuda a tirar o fôlego já tão escasso no meio dos soluços, me vi de pé na encruzilhada em que me foi dito: "Escolha". E eu escolhi.
Por mais que as pessoas digam "Não faça isso, é um erro que você só vai perceber no futuro", há quase dez anos vivo em função das minhas filhas. Vivo por elas, para elas. Parei de investir na minha carreira como jornalista, que me roubaria tempo de ser mãe. Trabalho 16 horas por dia como frila, e parei de procurar um emprego fixo que me dê o plano de saúde que não tenho e benefícios dos quais não usufruo (como depósito no INSS para a minha aposentadoria, 13º e FGTS) porque não achei um trabalho que pague o salário de quem vá buscá-las na escola, levá-las ao médico ou ficar em casa com elas enquanto eu não chego.
Economizo tostões, reluto em comprar o que seja para mim para que jamais eu tenha que dizer não ao que é básico e essencial à sua infância - e não estou falando de roupas de grife ou brinquedos da Mattel. Penso nelas quando alguém se aproxima - e por experiência (de escassez exponencial), a menção da palavra "filhas" transforma o interesse em compromissos urgentes bem longe dali. Entre ele e elas, sempre escolherei a elas.
E assim esse processo, que vem lenta e inexoravelmente se instalando nos últimos três, quatro anos, teve sua conclusão no sábado. Envelhecida, num sábado à tarde passando as roupas das meninas, como faço há um punhado de sábados, já. A tristeza de me sentir tão pouco mulher, tão pouco desejada apresentou-se. Ela está lá, conformada, em silêncio. Como eu, ao guardar nas gavetas as camisetas mornas e perfumadas, ao acomodar os vestidos com cuidado nos cabides.
Esvaziou-se o cesto, o ferro esfriou, o sinal do satélite voltou. A noite veio e eu só acendi as luzes muito tarde. Jantei, dei de comer aos cachorros, li um trecho de um livro de que não lembro mais e fui dormir às nove. O sábado terminou, o domingo veio e foi embora, mas antes trouxe minhas meninas de volta.
Eu escolhi. E, apesar de toda a tristeza e a solidão, não me arrependo.
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2 comentários:
eu sou essa aí, também.
diferente mas bem igual, entende?
claro que entende.
*
*
quando eu for prosriodijaneirus eu quero te dar um abraço bem grande, tá?
Me emocionei te lendo. Sou mãe de uma menina de 5 anos e te entendo perfeitamente, por mais dificil que seja abrir mão de alguma coisa e memo sabendo que isso nos fará muita falta, por um filho somos capazes de fazer essa escolha felizes.
um beijo
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