segunda-feira, outubro 10, 2005

Pense como quiser

Foram três vezes:
1 - Quando eu tinha dez anos, fui morar numa cidade do interior de São Paulo. Foram dois anos em Mogi das Cruzes, numa casa modesta mas muito bonita. Tivemos nosso primeiro cachorro, a cidade tinha uma rua principal, chamada de "Rua dos Bancos". Um hotel bom, duas escolas (uma pública e uma particular), a igreja matriz na praça principal.
Na turma da minha irmã, havia um moleque chamado Rodrigo. Digo moleque porque ele era muito, muito levado, daqueles moleques do interior, que gostava de jogar bola de gude, subir em árvore, vivia de joelho ralado, rosto sujo. A mãe era a professora de artes plásticas, uma japonesa micra, delicadinha. O pai era dono de uma lojinha de uniformes.
Um dia, o Rodrigo não foi à aula. Resolveu pular a janela do quarto dele à noite para ir buscar, junto com o irmão mais velho, uma porção de garrafas que estava no lixo do Mogi Tênis Clube, depois de uma daquelas festas de debutantes tão comuns. O pai deu-lhe um tiro, achando que fosse um assaltante. Era um homem de bem. Rodrigo tinha 13 anos.
2 - Aos 12 anos, fui morar em Salvador. Morávamos numa bela casa, num bairro só de condomínios chamado Caminho das Árvores. A nossa casa tinha piscina, dois andares, muitas varandas e até uma horta. Meu pai, que começou a ficar paranóico com seqüestros e assaltos, não satisfeito com dois filas que compramos, ainda incrementou o arsenal com dois revólveres e uma espingarda. Ensinou a mim e à minha irmã a atirar (meu irmão já sabia, pois seguiu carreira militar).
Em 12 anos, nossa casa foi assaltada uma única vez, no dia da formatura da minha irmã: presumimos que fora um garoto que entrara pela janela do banheiro, muito pequena, e acabara encurralado no quarto dos meus pais, pois nossa dálmata dormia dentro de casa. Ele levou as armas do meu pai. Da espingarda nunca mais ouvimos falar, mas os revólveres apareceram logo depois: um foi apreendido numa batida numa favela, o outro foi usado para fuzilar o dono de uma lotérica. Até hoje tenho o recorte do jornal A Tarde: deixou dois filhos e mulher. Meu pai chegou a conhecê-la, porque foi chamado à delegacia para mostrar o registro da arma.
Meu pai é um homem de bem, e continua com armas dentro de casa: uma pistola e dois revólveres.
3 - Eu estava grávida da Catatau, Zé Colméia dormindo na cadeirinha. Estávamos no centro da cidade, quando um carro saiu do nada e nos fechou. O motorista devia ter uns 40 anos. Havia uma mulher no carona e atrás, também uma criança, dos seus três anos. O carro, uma Blazer branca. Meu ex-marido reclamou, num ato reflexo. A Blazer emparelhou e nos jogou para um posto de gasolina ali na Praça da Bandeira. O cara saltou, braço pra baixo, e encostou na janela do motorista. Arma na mão, só disse isso: "Seu babaca, agora reclama, vai". A arma encostada no vidro, o cara olhando para Zé Colméia atrás. E quando um frentista se aproximou, ele abaixou o braço, encostou a arma no corpo e foi embora. Ele parecia um homem de bem.

Quando eu trabalhava em jornal, um policial civil (que perdera o filho num assalto, quando ele tentou reagir) me disse que o maior problema é o freio moral: "Quem tem arma hesita milésimos de segundo, o suficiente para o cara que está assaltando você te desarmar ou matar alguém. Ele não tem nada a perder. Você tem." Eu sou a favor do desarmamento E de uma polícia eficiente. Achar que o certo é viver em Dodge City é acabar como na Flórida, onde foi aprovada uma lei em que você pode atirar primeiro e perguntar depois.

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