Eu ainda me pego baixando filmes que, tenho certeza, ele ia amar. Músicas dos anos 50 e 60. Separando CDs em lojas de importados, livros na Travessa. Pegando nas Lojas Americanas pacotes das meias que ele gostava. Pra quem é isso, mãe? Pensando em que caixa vou acondicionar este ano os quindins, já que a antiga se partiu.
Eu ainda acredito que me pai está por aqui, ao alcance de uma viagem de ônibus, de um telefonema. Eu ainda acredito porque não vi meu pai morto. E por isso ainda dói tanto. Como disse tão sabiamente Calvin, ele se foi lá fora, mas não aqui dentro.
segunda-feira, dezembro 17, 2012
sexta-feira, dezembro 14, 2012
2013
Ninguém reconhece você.
Formatura da Catatau. Saí depois da cerimônia (o pai levou pra jantar). Andei até o prédio dos meus pais (e que a partir de janeiro será o meu, também). O porteiro-da-tarde-saindo conversando com o porteiro-da-noite-entrando e o porteiro-do-dia-sem-nada-pra-fazer. Os três no jardim do prédio.
Eu na porta, olhando pros três. Eu, de cabelo penteado, vestido novo & bonito, salto, bolsa pequena, maquiada, unhas feitas. Eu, gente. Eles olhando.
Toco o interfone. Os três ainda olhando. O-da-tarde se aproxima devagar.
"D. Suzana?!"
Você sabe que precisa mudar alguma (aka muita) coisa na sua vida quando vide acima.
Formatura da Catatau. Saí depois da cerimônia (o pai levou pra jantar). Andei até o prédio dos meus pais (e que a partir de janeiro será o meu, também). O porteiro-da-tarde-saindo conversando com o porteiro-da-noite-entrando e o porteiro-do-dia-sem-nada-pra-fazer. Os três no jardim do prédio.
Eu na porta, olhando pros três. Eu, de cabelo penteado, vestido novo & bonito, salto, bolsa pequena, maquiada, unhas feitas. Eu, gente. Eles olhando.
Toco o interfone. Os três ainda olhando. O-da-tarde se aproxima devagar.
"D. Suzana?!"
Você sabe que precisa mudar alguma (aka muita) coisa na sua vida quando vide acima.
quarta-feira, dezembro 12, 2012
quarta-feira, dezembro 05, 2012
Pai Nosso
Não consigo entender, casou tão apaixonado pra terminar assim, batendo a porta na minha cara, me chamando de tanta coisa...
Depois de dias de tanta chuva, o dia estava lindo. O céu extremamente azul. Eu pensei comigo vou prestar atenção em todos os detalhes. No vento que balançava a copa dos eucaliptos, no silêncio, nas flores à beira da estrada, em como alguém pode usar tanto azulejo e na cor nova que o dono escolheu agora para pintar a sua vendinha.
Maria depois me perguntaria Mamãe, o que são "minhas pêndices"? E eu engasguei porque, você sabe, não se chora de tristeza e se gargalha ao mesmo tempo. É "meus pêsames", filha. Pêsames me irritam. Sempre me irritaram. Antigamente, as gargalhadas também, até eu entender que podemos chorar e gargalhar ao mesmo tempo - mesmo sendo fisicamente impossível. Celebra-se a vida.
Meu pai jamais foi uma pessoa fácil de se conviver. Ficar velho estava fora de cogitação. Porque velhice é igual a dependência, lentidão, desprezo, desrespeito. Esquecimento.
Eu preciso ir lá. Eu não vi seu pai, preciso ir lá.
Minha filha foi até a capela, mãos dadas com minha mãe. Eu não fui. Fiquei do lado de fora, milhares de mosquitos a me picarem pernas, braços, orelhas, a despeito dos litros de repelente. Não importava. Um calor obsceno, sufocante, só as copas dos eucaliptos balançando lá no alto. Beija-flores, bem-te-vis. Tanto azulejo nos túmulos. Alguém lá dentro puxou uma Ave Maria. Ele não gostou, tenho certeza. Pra ele, somente o Pai Nosso - a única oração que Jesus ensinou ao homem.
E por que não me sinto culpada? Eu devia sentir culpa pelo alívio.
Meu pai tirou um tumor do cérebro mês passado. Depois da operação, o físico curou-se, o mental foi-se. Ele passava os dias procurando por meu avô, que morreu em 2001 - os dois brigados por uma bobagem que nem lembro mais qual. Domingo, saiu de casa de madrugada e caiu num córrego que passa dentro do sítio. Passou a noite na lama e no frio - minha mãe só o achou às sete da manhã. Quarta, voltou do hospital com o pé fraturado e uma leve falta de ar. Minha mãe subiu para preparar o quarto e ele, depois de dizer que não conseguia respirar, qual a música infantil deu três suspiros e morreu. Rapidamente, como queria. Sem ter ficado preso a uma cama, como ele queria. Sem ter ninguém a trocá-lo, alimentá-lo, virá-lo, lavá-lo - como ele queria.
Meu pai morreu. Minha mãe não viu quando ele se foi. Eu não vi meu pai morto. Ela sente culpa porque, depois de 51 anos de casados, ele a humilhava, maltratava, xingava, ignorava - o neurocirurgião nunca vira antes um Alzheimer tão agressivo. Ela sente culpa porque a morte dele foi um alívio. Ela pode agora voltar a viver. Pode dormir, pode comer o que quiser, pode usar sapatos e não andar de meias em casa - o barulho o irritava. Falei com ele no sábado antes de ele cair no córrego, e ele me abençoou. Vi meu pai um mês antes, quando ele estava a caminho da sala de cirurgia, brincando com as enfermeiras e o anestesista. Beijei-o e disse Vou estar aqui, pai.
Eu estou aqui, pai - e você também, sempre.
Depois de dias de tanta chuva, o dia estava lindo. O céu extremamente azul. Eu pensei comigo vou prestar atenção em todos os detalhes. No vento que balançava a copa dos eucaliptos, no silêncio, nas flores à beira da estrada, em como alguém pode usar tanto azulejo e na cor nova que o dono escolheu agora para pintar a sua vendinha.
Maria depois me perguntaria Mamãe, o que são "minhas pêndices"? E eu engasguei porque, você sabe, não se chora de tristeza e se gargalha ao mesmo tempo. É "meus pêsames", filha. Pêsames me irritam. Sempre me irritaram. Antigamente, as gargalhadas também, até eu entender que podemos chorar e gargalhar ao mesmo tempo - mesmo sendo fisicamente impossível. Celebra-se a vida.
Meu pai jamais foi uma pessoa fácil de se conviver. Ficar velho estava fora de cogitação. Porque velhice é igual a dependência, lentidão, desprezo, desrespeito. Esquecimento.
Eu preciso ir lá. Eu não vi seu pai, preciso ir lá.
Minha filha foi até a capela, mãos dadas com minha mãe. Eu não fui. Fiquei do lado de fora, milhares de mosquitos a me picarem pernas, braços, orelhas, a despeito dos litros de repelente. Não importava. Um calor obsceno, sufocante, só as copas dos eucaliptos balançando lá no alto. Beija-flores, bem-te-vis. Tanto azulejo nos túmulos. Alguém lá dentro puxou uma Ave Maria. Ele não gostou, tenho certeza. Pra ele, somente o Pai Nosso - a única oração que Jesus ensinou ao homem.
E por que não me sinto culpada? Eu devia sentir culpa pelo alívio.
Meu pai tirou um tumor do cérebro mês passado. Depois da operação, o físico curou-se, o mental foi-se. Ele passava os dias procurando por meu avô, que morreu em 2001 - os dois brigados por uma bobagem que nem lembro mais qual. Domingo, saiu de casa de madrugada e caiu num córrego que passa dentro do sítio. Passou a noite na lama e no frio - minha mãe só o achou às sete da manhã. Quarta, voltou do hospital com o pé fraturado e uma leve falta de ar. Minha mãe subiu para preparar o quarto e ele, depois de dizer que não conseguia respirar, qual a música infantil deu três suspiros e morreu. Rapidamente, como queria. Sem ter ficado preso a uma cama, como ele queria. Sem ter ninguém a trocá-lo, alimentá-lo, virá-lo, lavá-lo - como ele queria.
Meu pai morreu. Minha mãe não viu quando ele se foi. Eu não vi meu pai morto. Ela sente culpa porque, depois de 51 anos de casados, ele a humilhava, maltratava, xingava, ignorava - o neurocirurgião nunca vira antes um Alzheimer tão agressivo. Ela sente culpa porque a morte dele foi um alívio. Ela pode agora voltar a viver. Pode dormir, pode comer o que quiser, pode usar sapatos e não andar de meias em casa - o barulho o irritava. Falei com ele no sábado antes de ele cair no córrego, e ele me abençoou. Vi meu pai um mês antes, quando ele estava a caminho da sala de cirurgia, brincando com as enfermeiras e o anestesista. Beijei-o e disse Vou estar aqui, pai.
Eu estou aqui, pai - e você também, sempre.
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