Eu sempre me lembro de você, meu amigo. Até porque queria saber a receita, o remédio, a maneira, o truque, o pulo-do-gato, o segredo, o macete, a chave tão bem guardada para fazer com que pare de doer. Um dia.
Porque eu poderia tê-la levado mais cedo no veterinário. Podia ter cedido ao vizinho. Ou não ter me ausentado de casa no fim de semana. Podia ter prestado mais atenção e visto que era muito mais sério do que eu pensava. Não deveria ter tentado resolver sozinha. Não deveria ter postergado. Não deveria ter esperado.
Não devia.
Às 13h30m o rapaz do crematório passou na clínica. "A senhora pode deixar que eu vou cuidar bem dela." "Eu vou junto." "Mas ela vai ser cremada com outros animais - por que a senhora não se despede aqui?" "Eu quero cremação individual. E eu vou junto." Ela foi dentro de um saco de lixo, preto. Havia outros dois animais na traseira do carro - um deles ainda na gaiolinha. Ilha de Guaratiba. Chegamos lá perto das 16h. Um calor infernal. Não vi quando a levaram. Eu sei que foi covardia, mas me escondi do outro lado do carro.
O lugar é pequeno, mas bonitinho. Algumas sepulturas de cães e gatos. Branquinha, Fofocão, Suling, Mimi, Thor. "O rapaz está ajeitando tudo, e quando estiver preparado ele vai chamar pra senhora se despedir dela." E eu fiquei andando pelo jardim. E ouvi o crematório a todo vapor. Ele não me chamou. Eu estava criando coragem para dar um beijo nela, coragem pra não me assustar de tocar o pelo gelado.
Nada. Duas horas depois, eu toda suada e picada de mosquitos, ouvi quando ele desligou o fogo e começou a quebrar as cinzas. Batia tentando não fazer tanto barulho, mas era como se marretasse alguma coisa. E eu ouvia as pedras se quebrando. Minha cadela branca e dourada, sempre tão macia e morna, agora era cinza dura e incandescente. "Já está pronto." A urna era de MDF, sem pintura. "A pintada custa mais caro." Escolhi uma, ajeitei o saco plástico com laço verde dentro da caixinha. Saí, peguei uma kombi caindo aos pedaços até a estrada principal. Eram seis da tarde, e armava-se um temporal. Dali peguei um ônibus até a Barra, a caixinha fazendo marca no colo porque, sabe, eu não queria chorar. E o seco dentro do peito era mais doloroso do que qualquer outra coisa.
Desci na Barra às 20h. Mais calor. Peguei o ônibus do metrô - e lembrei que não havia mais ração em casa. Tinha esquecido de encomendar. Às 22h, saltei no Largo do Machado e entrei no supermercado. A caixinha ajeitada dentro do carrinho de compras. Saí com minha cadela querida há oito anos arrumada numa sacola de plástico.
Perto das dez horas, cheguei em casa. Dei comida aos cachorros. Silêncio na casa do vizinho. Estava sem água em casa. Mas não teve importância porque, como em toda situação-clichê, a que saiu de dentro de mim madrugada adentro me bastou. Pelo menos, naquele momento.
No domingo, peguei as meninas na casa de uma coleguinha - a mãe, sabendo da situação, levou as duas para a casa dela. Saímos para almoçar. Passeamos. De noitinha, trouxe-as para o apartamento dos meus pais e contei a verdade. E elas choraram. "Mãe, posso falar palavrão? Por favor, mãe." E desfiaram os três palavrões que elas sabem vezes sem conta. "Mamãe, está doendo tanto aqui dentro. Por que dói tanto?" A morte deixou de ser filme de pou-pou, como Zé Colméia diz, e deslizou para dentro da realidade das duas.
Elas ainda choram durante o dia. Eu choro. Os cachorros não entendem como deixei um estranho entrar e levar embora a companheira dos dois. Ficam nervosos quando eu saio. Ainda esperam que ela volte.
Eu também.
quarta-feira, novembro 11, 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
11 comentários:
a foto do banner tá linda, linda.
tenta lembrar dela assim, ao menos?
e esse post tá de chorar. sei que vc não me conhece, mas precisndo de ombro, inclusive pras meninas, tô aqui.
beijo
Renata
Suzana, doeu aqui. Aqui também saíram lágrimas sentidas. Eu já perdi um animal querido por envenenamento, e o sentimento de revolta é tão absurdo que seca a garganta. Sinto muito, muito mesmo. Sinto mais ainda por não poder fazer nada nessa hora, além de abrir meu coração e tirar dele as melhores energias que tenho, enviando-as em pensamento pra você. Um beijo sincero, Adrina.
me parte o coração. DEMAIS. demais da conta!
Que tristeza...
Suzana, não sei se isso vai te confortar, mas saiba que, um dia, a vida vai cobrar desse maldito. E se há justiça divina, ele há de sentir a mesma dor e agonia que sua cachorra sentiu.
Não tolero violência com animais, principalmente com cachorros, que na minha opinião, são seres angelicais.
Li essa notícia na Adrina e resolvi passar por aqui, para prestar solidariedade. Tenho duas cachorrinhas (Jully e Catharina) que são tudo pra mim. Imagino a dor que deve estar sentindo.
Força e fé!
Suzana, primeira vez que leio seu blog. Adoro os bichinhos e seu olhar meigo, e suas brincadeiras de amor. Olha, sua cadelinha foi para o céu dos cachorrinhos. Infelizmente não temos como controlar a maldade humana. Que horror. Mas fique bem, pois fez o melhor que podia. Beijos com carinho para vc e suas filhotas.
Oi Suzana! Voce ja deve ter percebido que tem alguem aqui, do Oriente Medio, lendo o seu blog de ponta a ponta. Acabei de entrar em 2007.
Eu chorei lendo esse ultimo post. Chorei pela humanidade que anda se perdendo, perdendo a noção do que é certo e errado e se tornando cada vez mais egoísta. Como disse alguém aí em cima, tudo o que se faz, volta. Pode ter certeza que se o vizinho fez mesmo isso, ele recebera de volta.
Chorei porque amo cachorros. Definitivamente o grande amigo do homem.
Chorei pelas suas filhas terem que passar por isso. O mundo já anda muito cruel e, como mãe de um bebe, eu me pego pensando o quanto quero protege-lo da crueldade alheia o maximo de tempo que eu puder. Acontece algo assim, e você sente uma perda tripla. Pelo sua cachorrinha e por cada uma de suas filhas, que precisam já lidar com perdas.
Força! E não se sinta culpada... a vida tem dessas mesmo, joga umas situações no nosso caminho e não tem muito o que a gente faça. Só esperar porque vai melhorar.
Beijos para você e suas 2 pequenas.
eu também chorei. pela tua cadelinha linda e pelas minhas duas filhotas, tão inocentes quanto a tua. uma maldade dessas com um animal parte o meu coração em muitos pedaços. no teu lugar eu também estaria desnorteada e sofrendo. não sei o que dizer numa horas dessas. eu nunca sei usar palavras adequadas. mas te ofereço meu ombro, caso você precise. bjs
Su, é tanta tristeza, não deixe que o sentimento de culpa se some a isso: você jamais poderia prever porque, simplesmente, é tudo absurdo demais.
Suzana, sinto tanto, tanto...
Lembro quando perdi a minha Dalila (era um fila, fui eu que dei o nome à ela, sempre era eu a incumbida de escolher o nome dos bichinhos, lá em casa) e quando perdi a minha gatinha, Kitty. Doeu muito mesmo em ambas as ocasiões. Com a cadela, não consegui lidar com a situação, deixei por conta da minha mãe, que cuidou de tudo. Ignorei porque foi a única forma que encontrei de passar por aquilo. Com a Kitty, não. Assumi tudo, o tratamento, os cuidados, mesmo não morando mais com ela, que ficou com minha mãe quando me mudei, porque onde eu morava não aceitavam animais, eu ia lá todos os dias para levá-la ao veterinário e dar os medicamentos, etc. Foi assim por uns quinze dias, porém ela não resistiu. Mas sei que fiz o que podia. E você também, fez tudo o que podia pela sua cadela. Não se sinta culpada.
Lamento muito pela meninas, que tem que lidar com isso tão pequeninas. Elas são corajosas, muito mais que eu, que já era uma adulta quando minha Dalila morreu.
Tomara que o tempo leve logo embora toda a dor de vocês, e deixe só as boas lembranças com a bichinha.
Beijos.
Puxa , Suzana, que tristeza. *Leio sempre o seu blog, mas o último post que tinha lido foi o da quinta-feira passada. Fiquei muito triste mesmo. Amo tanto os animais e sei como é perder um bichinho assim, dessa forma tão cruel e covarde. Chorei aqui. Sinto muito. Nem sei o que dizer. É de cortar o coração. Muita força.
*leio sempre, mas nunca comentei, nunca tive "coragem", embora tenha tido vontade.
Postar um comentário