quinta-feira, dezembro 22, 2005

O que ele jamais entenderá

 Posted by Picasa


Não sei quando a criança pára
de enxergar anjos ou de cumprimentá-los.
Se acontece por uma obediência natural

ao esquecimento, ou só depois?
Para não sofrer com os acidentes do invisível,
já que é demasiado sofrer

com o que se aprende no visível.
Essa é uma resposta que te devo.
Ficamos juntos alguns dias do mês,

as férias, e fico reparando em teus gestos
para descobrir algo do meu temperamento no teu.
Eu não te eduquei,

não te corrigi em seqüência,
sou o pai que vai voltar tarde.
Tudo o que tento ensinar não tem uma segunda

e uma terça-feira para permanecer.
Esquecemos de continuar, de completar
a frase, o assunto e a partitura.

Nossa convivência é feita de inícios,
com a memória diária de que estou ali
e tu estás ali, como duas crianças

regendo uma tempestade.
Te aproximas de mim
a segurar um objeto antigo.

Um objeto antigo que recorda
a casa que não teve. Não descobri
a forma ideal de convivência,

muito menos o que gritar
para chamar tua atenção.
O que desperta tua confiança:

A ordem ou o sussurro?
O riso contido ou desavergonhado?
O choro de frente ou murmúrio abafado?

Na hora em que me beijas,
viras o rosto lentamente,
a escapar da barba.

Herdaste até o medo da barba de tua mãe.
Herdaste os medos dela com lealdade.
Não herdaste meu medo

de não ser compreendido.
Não posso me defender
dos ataques dela,

do que ela possa dizer de mim.
Porque defender é atacar.
Atacar é destruir a casa

em que moras, a vida que tens,
o mundo que desde sempre
reverencias como teu e indivisível.

Fabrício Carpinejar, "Minha filha sem mim"
"Meu Filho, Minha Filha", inédito

Um comentário:

Unknown disse...

Resolvi organizar a leitura por aqui para evitar ficar lendo posts aleatoriamente... Comecei por 2005. Hora de paz (?) essa, sentar aqui e ficar a ler seus anseios e divagações para tentar ordenar as minhas. Olha que já li um bocado nessa vida, mas grata surpresa a de ver aqui palavras que existiam em mim e eu nem sabia...
Li seu email e fico contente por saber que um dia isso a que chamamos dor, mas que é muito pior, passa. Ou diminui... Peço desculpas, mas esse poema é demasiado forte para mantê-lo aqui. Roubar-te-ei a idéia e o colocarei na minha página do orkut, pode ser? Acho que não vais se importar...
Aos pouquinhos, com o avançar da leitura, vou comentando.
Grande abraço,
Ana Cecília