quarta-feira, setembro 22, 2010

Hate on me*

Posts longos. Noites com mais de quatro horas de sono. Unhas feitas às segundas-feiras. Uma conversa com minhas filhas que não envolva "Você já fez isso?" ou "Depois a gente conversa."

Eu disse essa última frase para Catatau enquanto lavava a louça e tentava me desviar do cachorro que me lambia as pernas com bafo de osso recém-roído. "Depois, quando, mamãe? Você só diz isso: 'depois', 'depois', 'depois'."

Depois. E eu jurei que não deixaria, nunca mais, nada para depois. E pra depois vão ficando as coisas, porque eu sinto que os anos que não dediquei a uma carreira estão me dando uma última oportunidade antes de irem embora pra nunca mais voltarem. Duas vezes por mês vou a São Paulo, e na terça vou apresentar o meu trabalho a um editor americano que foi contratado para dar um gás na empresa onde estou. Ele quer ver o que eu estou fazendo. Ouvir o que eu tenho a dizer. Os editores foram convidados a assistir. E a perguntar. Mas eu vou apresentar. E então. A oportunidade.

De manhã cedo, espremida entre as meninas no banco de trás do táxi, enquanto as duas tagarelam eu vou pensando e escrevendo as malditas cartas que se acumulam cheias de pó na minha cabeça. Escrevo para mim mesma - listas de coisas a fazer, comprar, cancelar, providenciar, encomendar, imprimir, esquecer. Deixo as meninas na escola e vejo quantas crianças chegam em carrinhos, tão grandes já que quase fazem a lona do assento encostar no chão; quatro, cinco anos, com as inseparáveis chupetas que as mães não ousam tirar. Algumas fazem a parada obrigatória no baleiro, abastecendo a merendeira já estufada pelo saco de batatas fritas com as balas e chhicletes do dia. E eu então escrevo uma longa carta de agradecimento à minha mãe que, no seu jeito quieto, não seguiu o rigor hipócrita do meu pai e nos criou à base de muito leite, carne e verduras, num cardápio temperado a Mentex, Frutella e balas Soft.

No metrô, na ida e na volta, escrevo aos meus amigos, alguns já mortos, sobre como é feia a moda de sapatos de bico fino; que interessante era aquele rapaz chinês lendo um livro em mandarim; a expressão da moça que olhava, com inveja, o casal se beijando na sua frente, ou como todo mundo parece se esquecer, com seus iPods & assemelhados que, sim senhor, fazemos todos parte de uma mesma humanidade então não adianta fingir que não viu a velhinha século XIX entrando no vagão.

Chego em casa e encerro o dia perto da meia-noite. Durmo no sofá do meu quarto e quem me acorda é um dos cachorros, me lambendo a cara. Retomo a vida perto de uma da manhã - tomo banho, apago as luzes, checo as meninas; me deito no escuro e escrevo a derradeira carta, aquela para que comprei papel de carta, envelopes, que tomei coragem e perguntei "Você me dá seu endereço?". Uma carta que jamais tem menos do que três páginas, onde abro o coração de uma maneira que não faço nem para mim mesma.

De uma maneira desapaixonada, me dou liberdade de questionar a vida, falar do meu medo de envelhecer sem ninguém, da solidão em que construo todo os meus santos dias, das coisas que queria fazer e não consigo, daquilo que faço e não deveria, das minhas conquistas que, no silêncio da madrugada, não interessam a absolutamente ninguém.

Escrever essas cartas no papel que escolhi - papel linho, branco e macio - e não apenas dentro de mim. Um dia. Porque elas nunca terminam com um "Saudades" ou "Com carinho". Quando durmo, escrevo no fim da página "Depois a gente conversa".

*Jill Scott. Música que não consigo parar de ouvir.

6 comentários:

As Três Marias versão 3.0 disse...

são ótimos os seus textos!!!
Parabens.

Ana Cecília Moura disse...

Não sei por quê, mas acho que as cartas que não enviamos são as mais interessantes.

As "escritas" assim, ao longo do teu dia, para todos e para ninguém, ao menos mantêm o lirismo sublimatório tão necessário para que o cotidiano burocrático não nos destrua de vez.

Não ceda às cobranças das meninas. Vc faz o que pode. Ou bem mais do que isso.

Dedinhos cruzados para que sua oportunidade profissional vingue e dê belos frutos.

Como é bom ler seus escritos! Prometo não me ausentar tanto novamente.

Beijos saudosos.

Elesbão disse...

http://28.media.tumblr.com/tumblr_l44i6jvluy1qzr04eo1_400.png

Nina Vieira disse...

Minha mãe também deixou muita coisa relacionada a mim "pra de´pois". Acreditei que seria um hábito terrível, com o tempo, compreendi que o "depois" é necessário - principalmente quando sentimos na pele.
Abraço.

Flávia Sardinha disse...

ai que saudades que eu sinto

Unknown disse...

Que doce é em plena segunda feira alucinada encontar um blog com tão belos textos..
...voltarei sempre.