sábado, outubro 27, 2012

Perdão

Por 14 anos eu amei Charles Bukovski. As pessoas riam do nome dele, até porque ele rapidamente virou Buco. Mas foi Charles Bukovski por toda a vida. Olhava de cima, porque entendia a vida. Tinha aprendido muito, silencioso no seu canto, vendo muita coisa - coisas que nem gente deveria ver.

O que eu mais me lembro são as mangueiras, carregadas de carlotinhas. Isso e a entrada da Ponte Rio-Niterói. Tudo cinzento - a ponte, o céu, o mar. A janela do carro ficou aberta, apesar de ventar muito. Porque você não esquece o cheiro.

Um velhinho. Ele foi muito simpático, atencioso, carinhoso - isso desde às seis da tarde do dia anterior, quando eu, aos prantos, tentava ao mesmo tempo ser racional com ele ao telefone, engolir o choro, extravasar a dor e consolar as meninas. Eu queria que alguém fizesse tudo por mim. Ele fez o que pôde. Chegou em casa quase às nove da noite, vindo do Recreio - meio Rio de Janeiro a percorrer antes da chuva. Pediu apenas que eu preenchesse um papel e ficasse dentro de casa com as meninas, que ele cuidaria de tudo. Ficamos eu e as meninas na cozinha, abraçadas, ouvindo o barulho do saco sendo desdobrado, o arfar sob mais de 50 quilos, o esforço em ser o mais silencioso possível. "Amanhã eu pego a senhora às nove, pode ser?"

As mangueiras. Carregadas. Logo depois da loja de Fogos Santo Antonio, dobrar e seguir uns dois quilômetros na estrada de terra. O lugar é bonito. Tem muitas árvores frutíferas e um tanque de tartarugas. Eu entro rápido, sento em frente à atendente e espero. Três horas. Não tem café ("Só abrimos faz dois meses"), mas uma coca-cola aparece. Catorze anos em três horas e, no fim, um saquinho de cinzas numa caixa. A moça põe uma oração dentro dela - ia botar também um imã de geladeira mas eu pedi, num soluço, "não, por favor, me dê aqui que eu guardo na bolsa."

Dia 18. Eu resolvi, depois de semanas de muita canseira, tirar um dia pra me divertir na internet. Um dia só para ler e falar abobrinhas, conhecer melhor as pessoas, rir um bocadinho. Eu me diverti muito!
Era para eu ter ido para casa depois de as meninas saírem do colégio, mas eu resolvi esticar um pouco - estava tão boa a conversa, né? Chegamos em casa às seis da tarde para encontrar meu adorado, meu querido golden retriever morto na varanda.


Hoje ele faria 14 anos. Culpa é uma merda. Saudade também.

terça-feira, outubro 16, 2012

Seu futuro em picles

Dando uma geral no apartamento, você chega a duas constatações preocupantes:

Sua mãe juntou exatos 688 vidros de conservas/molho de tomate/geléias
e
Você está indo pelo mesmo caminho.

No ar


Catatau foi pedida ontem em namoro, depois de duas semanas de enrolação - sabe como é, dois caranguejinhos ficam naquela coisa de vai prali, vai pra lá, tô cum vergonha, diz você.

Ele fez o pedido via webcam.

Tempos modernos.

quinta-feira, outubro 11, 2012

Acontece agora


Terça, 15h: Zé Colméia, chegada da escola, diz que brigou com uma das meninas do grupo e vai fazer o trabalho de geografia para ser entregue no dia seguinte, sozinha (aka comigo, of course). Espalhamos dois sacos de 100 litros de sucata na sala e começamos.

Quarta, 1h: Zé Colméia dorme pro cima de caixas de ovos. Eu ainda levo duas horas para finalizar a "casa que quatro cômodos de um morador com problemas de excesso de consumo".

Quarta, 3h20: Consigo me deitar.

Quarta, 3h50: O cachorro grita na cozinha porque não consegue levantar para beber água.

Quarta, 4h15: O cachorro grita na cozinha porque foi levantar e entalou embaixo da mesa.

Quarta, 4h52: O cachorro grita na cozinha porque não consegue levantar para fazer xixi.

Quarta, 5h: O cachorro grita lá fora porque escorregou e caiu numa poça de xixi, o que demanda lavar um golden retriever de 50 quilos com lenços umedecidos para bebês.

Quarta, 5h30: Lembro que não fiz nada para o lanche do Dia das Crianças da Catatau. Preparo sanduíches e faço a jato uma garrafa de mate.

Quarta, 7h: Despejo as crianças na escola e vou para a rodoviária.

Quarta, 7h50: Rumo a Friburgo, onde meu pai será operado. O homem ao meu lado tem um cacoete horrível de fungar alto a cada 0,8 segundo - faz isso por duas horas e meia.

Quarta, 11h: Chego no hospital. A cirurgia que seria às 9h é postergada para as 15h30m. Fico no quarto como acompanhante, o que dá à minha mãe a oportunidade de ter algumas horas sem alguém em jejum e com um tumor de 8cm na cabeça reclamando de tudo e se escondendo da enfermeira, que quer dar "uma injeção nas minhas pernas para que eu nunca mais ande."

Quarta, 17h: Meu pai começa a ser preparado para a cirurgia. Chega o neurocirurgião. Sigo para a rodoviária. As meninas estão na casa de uma professora, me esperando.

Quarta, 17h55: Pego o ônibus rumo ao Rio. Uma menina atrás de mim chuta a minha poltrona a viagem inteira.

Quarta, 20h45: Chego na rodoviária. Uma fila gigantesca para pegar um táxi. Consigo recolher as meninas uma hora depois.

Quarta,  22h: No supermercado, comprando ração para os cachorros.

Quarta, 22h45m: Chegamos em casa. Zé Colméia precisa refazer o trabalho - a professora diz que a casa tem que ter visão horizontal (caixas de sapatos montadas umas sobre as outras) e não vertical (como montamos, dentro de uma caixa de papel sulfite). Por gentileza, faleça, mestra.

Quinta, 2h30m: Zé Colméia desmaia sobre uma pilha de papel camurça. O cachorro grita na cozinha porque não consegue levantar para fazer xixi.

Quinta, 4h50m: Finalizo o trabalho. O cachorro grita na cozinha porque não consegue levantar pra beber água.

Quinta, 5h: Tomo café da manhã - se dormir não vou conseguir acordar as meninas na meia hora seguinte.

Quinta, 6h30m. Despacho as meninas para a escola. Enquanto sonho acordada com o meu travesseiro, a locadora liga - quer finalizar a inspeção da casa e só tem esse dia antes do feriado e, pra falar a verdade, está lá embaixo no portão e viu as meninas saindo e pode ser agora?

Quinta, 10h30m: A locadora sai.

Quinta, 10h35m: A escola liga. Zé Colméia está vomitando. Entre um ai quero minha mãe e outro, confessa que comeu sete churros escondido na hora do recreio.

Quinta, 11h15m: Vou buscar Zé Colméia na escola. Passo num hortifruti para comprar frutas.

Quinta, 12h30m: Vou buscar Catatau na escola. Ela ainda está almoçando. Enquanto espero, combino três visitas para orçamento de empresas de mudanças/pintura/impermeabilização de assoalho.

Quinta, 16h: Depois de encomendar ração, passar no banco, pagar contas, comprar remédios, lavar e pendurar duas máquinas de roupa, estou saindo para fazer o supermercado do feriado.

A única coisa que me mantém em pé é a eletricidade estática. Sou um experimento da física humano, ao vivo e a cores, em tempo real. Também estou vendo coisas, mas é melhor pular essa parte.

terça-feira, outubro 09, 2012

Tudo de novo

Meu medo de conhecer gente nova - eu, não Suzana - é quase patológico.
Pra sair à luz do sol vou ter que reaprender a ser um bicho social.

Ao encontro da luz

Você começa realmente a questionar se esse mundo - o mesmo mundo que se apresenta ao piscarmos os olhinhos toda manhã - é real ou fruto de uma diabólica conspiração arquitetada por uma corporação do futuro quando você descobre que sua filha (aquela que não sabe falar de outra coisa que não seja Crepúsculo e atores musculosos & outras abobrinhas típicas de quem não tem nada da cabeça) tem, no iPod, dezenas de músicas de James Brown, Marvin Gaye, Etta James (!), Sly & The Family Stones (!!), Stevie Wonder e por aí vai.

E carrega na mochila O morro dos ventos uivantes*.

Sim. Há esperança.
Oremos.

* O livro preferido da Bella, de Crepúsculo. Nada é perfeito.

segunda-feira, outubro 08, 2012

...

Desfazer dois imóveis (aka livros, livros, documentos, livros, fotografias, livros, bonecos de pelúcia, barbies, livros, livros, livros, livros, dois cachorros, livros, livros e meia dúzia de livros) e juntá-los em um só:

Quero muito, mas muito - MUITO - a minha mãe.

quinta-feira, outubro 04, 2012

...

E o negócio tá andando - e eu tô dando uma empurrada, porque o dinheiro da poupança acabou. Finito. Então agora TEM que correr pro abraço, porque já estamos nos acréscimos e prorrogação não vai ter não, filha.

Mas não era sobre isso o que eu ia falar. Desde que voltou da imersão como-seria-viver-na-casa-do-meu pai, Zé Colméia acordou pra vida e resolveu estudar (a ameaça de perder o ano também ajudou). Estávamos ontem falando do meu negócio e da reunião que eu tive com a sócia carioca (sou chique: tenho uma sócia do Rio e uma sócia paulista). E filhota perguntou: "Mãe, minha prima trabalha desde os 14 anos. Posso trabalhar também?"

Amei aquela aborrecente que nos últimos dias voltou a brincar com seu bebê-boneca (tudo bem que a dita é chamada de "Kristéin" - nada é perfeito). Uma cara muito séria. Falei que ela teria que ser aprendiz, que teria que esperar até depois de junho de 2013 (quando ela faz 14 anos), que eu podia falar com o povo das editoras etc. Ela pediu então pra ligar pro pai para contar a novidade.

O que ele fez?

Riu da cara dela. Histericamente.

Depois vem a representante do Ministério Público dizer que "a presença do pai é importante".

Faleçam os dois.

segunda-feira, outubro 01, 2012

Os afogados e os sobreviventes*


A vida é somente histórias que contamos, me diz uma tcheca que mora na Inglaterra - é uma das milhares de crianças adotadas por famílias que receberam os órfãos da guerra. Ela descobriu, tarde na vida, que tudo o que ela sabia sobre sua família era uma ficção muito bem contada. Ou quase. Também está numa cruzada para achar seus quatro irmãos.

Somos seis na busca pela família Di Zio. Um mora na Áustria e pegou para si o encargo de entrar em contato com as organizações, como a Fondation pour la Mémoire de la Déportation, o Museo della Deportazione e o Simon Wiesenthal Center, numa lista com mais de 50 entidades. Eu faço a pesquisa e escrevo emails. Já mandei quase uma centena, contando a mesma história. Recebi algumas respostas, mas normalmente é de gente que quer compartilhar sua experiência. Um homem da Austrália me disse que o pior que aconteceu é que todos dizem "nunca esquecer" mas ninguém quer ouvir. Diz ele que, menino ainda, quando tentava contar tudo o que tinha visto era interrompido. Esqueça, isso já passou. "Não, não passou. Jamais vai passar. O que fazemos é arrumar uma grande caixa em nossa cabeça e, ali, guardar as lembranças. Mesmo sem pais, irmãos, primos, tios, amigos que partilharam conosco o sofrimento - porque eles mesmos se foram - a sua ausência é que nos faz lembrar, todos os dias, que nós conseguimos, e eles não."

Eu sei que é uma busca infrutífera. Conversamos nós seis esse fim de semana e sabemos que essa é uma tarefa para anos de trabalho - tempo que nosso Emilio não tem.

* Primo Levi. A dor torna-se um vício que só é curado depois de lido tudo o que ele escreveu.